Uma Lava Jato dentro da Lava Jato
Os diálogos divulgados pelo site jornalístico Intercept mostraram a urgência em criar uma força tarefa para investigar os intestinos da força tarefa que o Brasil inteiro conheceu pelo nome de Lava Jato. É urgente, porque corremos o risco de testemunhar mais uma frustração nacional na tentativa de combater a corrupção na administração pública, partidos, empresas privadas e sistema judiciário.
O que o Intercept escancarou é a forma como um grupo de procuradores do Ministério Público Federal utilizaram o pretexto de combater o superfaturamento, propinas, caixa 2 e lavagem de dinheiro no governo, partidos e empreiteiras para fazer política e promover ideologias. Com isto frustraram todos os milhões de brasileiros que acreditaram na possibilidade da Lava Jato iniciar o saneamento das relações promiscuas entre governantes, partidos políticos e empresas privadas prestadoras de serviços para o poder público tanto na esfera federal como na estadual e municipal.
A politização e ideologização das ações da Lava Jato, em especial o seu núcleo central apelidado de República de Curitiba, requer um desdobramento inevitável para descobrir como e porque procuradores jovens acabaram traindo os princípios do Ministério Público, em tese uma entidade defensora dos interesses do governo e do cidadão, para dar origem a uma organização clandestina, quase uma máfia, cujos reais interesses e objetivos ainda não estão claros.
Na política, o grupo de procuradores chefiado pelo procurador paranaense Deltan Dallagnol, conseguiu impedir que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva concorresse e ganhasse as eleições de 2018. Não há muitas dúvidas de que Lula sabia dos negócios escusos em que seu governo e seu partido se meteram, mas nunca surgiu nenhuma prova concreta contra o ex-presidente que foi condenado a oito anos e alguns meses de prisão. Moralmente Lula pode ser considerado culpado, mas juridicamente foi punido com base em indícios ou suposições que não servem como prova.
A República de Curitiba
Os diálogos divulgados pelo Intercept mostram que o grupo de Deltan, com o apoio explícito do ex-juiz e agora ministro da Justiça Sergio Moro, usaram a lei e a desinformação para interferir no processo eleitoral em vez de se preocuparem com o combate à corrupção. A justificativa legal para a ação do Ministério Público para investigar ilícitos governamentais foi desvirtuada e aqui está o ponto critico no desdobramento futuro da Lava Jato. É indispensável investigar como e porque isto aconteceu.
É inegável que a Lava Jato conseguiu colocar o problema da corrupção governamental no topo da agenda pública nacional. Também é incontestável que ela desmanchou redes de negócios escusos comandadas por políticos como o ex-governador carioca Sergio Cabral e o ex-presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha, bem como empresas como Odebrecht, OAS e Camargo Correia que institucionalizaram a administração de propinas e superfaturamento em obras públicas.
Estes e outros feitos alimentaram a esperança popular de que finalmente ocorreria um saneamento do submundo do caixa 2 e da lavagem de dinheiro na administração pública. Hoje, no entanto, depois da publicação dos diálogos e mensagens trocadas via aplicativo Telegram entre os integrantes da “República de Curitiba” a confiança dos brasileiros na Lava Jato está abalada. As dúvidas começaram a contaminar todo o acervo de indícios, provas e delações premiadas, obtidos pela equipe de Deltan Dallagnol. Até mesmo os valores que a força tarefa diz ter recuperado no exterior estão hoje sob suspeita de superdimensionamento.
A viralização das dúvidas surgida a partir da conduta heterodoxa dos membros da Lava Jato é o principal argumento em favor da checagem das práticas, estratégias e objetivos adotados nas investigações. Permitir que o combate à corrupção seja associado a uma manobra politico-ideológica é frustrar a esperança de milhões de brasileiros e decretar a inviabilidade de qualquer nova iniciativa contra a prática do caixa 2 e da propina como instrumentos básicos para o financiamento de campanhas eleitorais no Brasil.
O duplo prejuízo
A corrupção desvia dinheiro do contribuinte para as contas de funcionários públicos, governantes, políticos, magistrados e empresários. É uma ferramenta básica para a intensificação da desigualdade econômica e portanto algo inaceitável para a convivência social no país. A corrupção é duplamente danosa ao eleitor brasileiro porque ela desvirtua os resultados eleitorais ao dar mais dinheiro e, portanto, mais visibilidade a alguns candidatos, eternizando a elitização da política nacional.
A criação de uma Lava Jato, dentro da Lava Jato, é uma questão complexa porque além de esmiuçar a conduta do grupo chefiado por Deltan Dallagnol para identificar como e porque ocorreu a desvirtuação da luta contra a corrupção, terá que verificar se este processo teve orientação superior nacional ou internacional. Não se trata de uma “vendetta” contra Dallagnol e a “República de Curitiba”, porque isto somente substituiria um grupo sob suspeita por outro igualmente não comprometido em ir até as origens do fenômeno da corrupção sistêmica na política nacional.
Outro fator crucial numa “Lava Jato da Lava Jato” é a preocupação com os mistérios da manipulação eletrônica de dinheiro. Dólares em cuecas e malas são a parte anedótica e sensacionalista da corrupção. Os grandes corruptos usam a internet e o complexo mundo dos grandes dados financeiros, sendo esta a razão porque tantos brigam pelo controle do COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras — órgão estatal). Quem tiver acesso privilegiado aos dados do COAF terá em suas mãos uma arma letal na manipulação da corrupção numa guerra política ou corporativa.
Com base em todas as experiências anteriores de combate à corrupção e nos erros cometidos durante os cinco anos da Lava Jato, a única coisa que ainda não foi tentada é a inclusão de organizações da sociedade civil, da universidade e de especialistas em análise de dados eletrônicos no monitoramento e investigação de operações sob suspeita. A imprensa também deveria ser parte de uma “Lava Jato da Lava Jato”, porque ela tem um papel essencial na transparência das investigações além de já ter acumulado uma razoável experiência na localização e checagem de informações, como é o caso do Consórcio Internacional de Jornalismo Investigativo, responsável pelo Panamá Papers.
Foi justamente a ausência de transparência nas ações do grupo chefiado por Deltan Dallagnol que permitiu o desvirtuamento da campanha contra a corrupção. O Intercept, um órgão da imprensa, foi decisivo para que o público conseguisse ver o que a “República de Curitiba” tentou esconder. Durante os cinco anos de Lava Jato, a imprensa ficou na posição de observadora e transmissora de vazamentos de informações organizados pela equipe de Dallagnol. Omitiu-se na hora de assumir seu compromisso com o jornalismo investigativo, erro que ainda pode ser corrigido.