O “silêncio estratégico” e a “quarentena informativa” como antídotos jornalísticos ao aumento da violência
Quando ocorrem eventos como o tiroteio na escola Raul Brasil, em Suzano, São Paulo, ou o massacre anti-islâmico na Nova Zelândia, os jornalistas enfrentam o dilema de como cobrir acontecimentos provocados pelo ódio, racismo, homofobia ou contra a diversidade cultural e religiosa. É uma situação que tem se repetido com preocupante frequência sem que a imprensa tenha chegado a um consenso sobre como lidar com ela.
Até hoje, assassinatos em massa praticados por indivíduos isolados são tratados como casos específicos onde geralmente os jornais e a TV centram sua cobertura nos aspectos descritivos e emotivos, e nas explicações por conta de desajustes psicológicos ou psiquiátricos dos criminosos. Mas agora, na era da avalanche informativa, o contexto mudou com a constatação de que a disseminação em larga escala de notícias sobre os massacres estaria na origem de um fenômeno de contágio da violência.
A hipótese do contágio ganha corpo cada vez que um assassino associa o seu ato a outros autores de massacres similares, como nos casos de tiroteios em escolas ou ataques contra grupos de imigrantes estrangeiros, em especial muçulmanos. Mas a imitação não consegue explicar sozinha as razões por trás de assassinatos em massa. Os ataques promovidos por extremistas deixaram de ser atos de vingança individualizada para serem executados como parte de ações midiáticas, vinculadas à transmissão massiva de mensagens político-ideológicas.
A vinculação de fato criminoso à narrativa desenvolvida pelo assassino para justificar o seu ato aumentou consideravelmente o grau de dificuldade das decisões de repórteres e editores, na medida em que a cobertura já não é mais condicionada apenas pelas regras jornalísticas. O significado e a mensagem associados ao delito tornaram-se mais importantes do que o ato em si, o que envolve questões teóricas complexas cuja natureza nem sempre é identificável rapidamente pelos profissionais encarregados da cobertura jornalística.
As pesquisadoras norte-americanas Danah Boyd e Joan Donovan, especializadas em manipulação da informação, defendem o chamado “silêncio estratégico” como forma de criar o que chamam de “quarentena informativa” na cobertura de eventos traumáticos produzidos por extremistas políticos. Seria uma forma de dar tempo aos jornalistas para que possam identificar, previamente, a natureza da mensagem que os assassinos pretendem transmitir através de matanças ou atentados terroristas.
A cegueira panóptica
A mesma preocupação em separar a cobertura factual da análise do discurso dos delinquentes foi enfatizada pela jornalista britânica Emily Bell ao afirmar que o jornalismo contemporâneo enfrenta um problema de “cegueira panóptica” (1) , ou seja, a dificuldade de incorporar uma visão ampla e diversificada à cobertura de eventos traumáticos, como o massacre de Christchurch, na Nova Zelândia. Emily dirige hoje o Tow Center for Digital Journalism, na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Ela afirma que o jornalismo na era digital precisa dar prioridade absoluta à previsão de atos terroristas em vez de reagir a eles, depois que ocorrem.
Já nos anos 60 do século passado, o líder nazista dos Estados Unidos, George Rockwell, afirmava que qualquer ação do seu partido só conseguia recrutar novos adeptos quando recebia grande cobertura da imprensa. Na época, esta declaração levou grupos antinazistas a exigirem que os jornais norte-americanos deixassem de destacar declarações e ações lideradas por Rockwell. Nas cidades em que a exigência foi acatada, os nazistas perderam seguidores e suas ações não conseguiram impactar a opinião pública.
As teses do “ silêncio estratégico” e da “ abordagem panóptica” introduzem temas absolutamente novos no quotidiano jornalístico, tradicionalmente focado na urgência, descrição e documentação dos efeitos traumáticos de um ato de violência. A realidade mundial está mostrando que os métodos tradicionais de cobertura jornalística de eventos violentos não conseguem acompanhar a velocidade de disseminação das notícias por meio das redes sociais. Isto permite que um criminoso ou criminosa ampliem o alcance social de seus atos por meio da manipulação de informações, como fez o extremista responsável pelo massacre na Nova Zelândia.
Atos de violência exercem uma atração especial sobre a imprensa a partir da regra jornalística segundo a qual fatos anormais ou que fogem do senso comum merecem ser notícia, como mostra o famoso clichê do homem que morde o cachorro. Neste caso, a noticiabilidade da mordida está vinculada à curiosidade do público e consequentemente à maximização das vendas do veículo jornalístico. Mas no momento em que editores e repórteres incorporam o silêncio estratégico e abordagem panóptica à rotina de coberturas de atos violentos, o foco central da notícia passa a ser outro, o do seu efeito social e político, ambos com baixa capacidade de gerar receitas financeiras.
A existência de um condicionamento econômico sinaliza que o processo de revisão das prioridades editoriais nas coberturas de atentados e massacres não será rápido e nem fácil, pois vai mexer com comportamentos e regras vigentes há muitos anos. Mas a imprensa tem um papel chave na formação de uma consciência coletiva contra o ódio e a violência, por isto a mudança de políticas editoriais precisa ser imediata.
(1) Panóptico, significa visão panorâmica e foi o termo usado por Emily Bell para expressar uma abordagem ampla e diversificada de fatos ou eventos de caráter jornalístico.