O risco do “fake” contra “fake’ na guerra da desinformação

Carlos Castilho
4 min readSep 17, 2020

A incerteza informativa é talvez o pior de todos os problemas que as novas tecnologias introduziram na nossa convivência diária com a notícia e com o jornalismo. O fenômeno das fake news (jargão inglês para notícia falsa) é mais profundo do que a simples decisão de considerar uma informação falsa ou verdadeira. Nosso modo de viver já está sendo alterado pela insegurança informativa e o que é pior, não temos ainda um antídoto 100% eficiente contra a pandemia da desinformação.

Ilustração Wikimedia / Creative Commons

A disseminação de fake news não é apenas um delito passível de punição. É também um fato político capaz de alterar drasticamente o jogo do poder e um comportamento social decorrente da nossa inexperiência no compartilhamento de dados, fatos e eventos bem como no controle dos fluxos de notícias nos quais estamos envolvidos.

A disseminação de informações falsas é um processo secular, mas que ganhou uma dimensão inédita depois da sua massificação das fake news pela internet. Elas eram uma questão moral e ética, mas se transformaram num fenômeno social e cultural diante da enorme complexidade do universo da informação digital e dos obstáculos técnicos na busca de novos parâmetros de confiabilidade noticiosa.

A arma mais eficiente usada pelos produtores de notícias falsas é dar-lhes uma sumaríssima roupagem de coisa digna de crédito e repetir a mentira com a maior intensidade e frequência possíveis. Uma notícia falsa geralmente é composta de uma parte pequena verdadeira e outra maior, falsa. Quem espalha procura misturar as partes verdadeira e falsa para que a pessoa que recebe tenha dificuldade em separar a porção digna de crédito da que é mentirosa.

Para separar a parte falsa da verdadeira é preciso analisar, investigar e comparar, o que na maioria dos casos leva tempo. Assim, quando você dispara uma avalancha de notícias falsas, meias verdades ou dados descontextualizados, os receptores raramente têm condições de checar todo o material. Até mesmo os institutos de certificação de credibilidade não conseguem conferir tudo o que jogado na web por robôs de disseminação de fake News.

A repetição exaustiva consegue resultados, mesmo que o conteúdo da informação seja pouco convincente. É que a multiplicação frenética praticamente impede um juízo crítico de leitores, ouvintes, telespectadores e internautas, bem como retarda a publicação do resultado da checagem. É o lado negativo da avalancha informativa criada pela internet e que tantas vantagens nos trouxe em termos de conhecimentos.

Passamos a viver num ambiente de saturação informativa onde a nossa reação a novos dados, fatos e eventos está cada vez menos analítica e crítica, e mais acumulativa e impressionista. O acúmulo de dados e fatos sobre um determinado evento ou processo acaba condicionando mais a formação de nossas opiniões do que a capacidade individual de destrinchar notícias sobre as quais temos conhecimentos superficiais.

Esforço hercúleo

Os promotores de fake news trabalham com probabilidades. Uma parte da imundice informativa que espalham acaba sendo desmascarada, mas a maior parte da “boiada” passa e chega ao público. Como a velocidade de disseminação é ampliada pelo uso crescente de robôs digitais implantados na internet, as instituições especializadas na checagem de notícias são obrigadas a uma luta inglória em defesa da confiabilidade daquilo que circula massivamente pelas redes sociais e chega 24 horas por dia a mais de dois bilhões de pessoas no mundo inteiro.

O tempo, mais do que a lógica e a racionalidade, passou a ser o fator determinante no sucesso das falsificações e mentiras espalhadas especialmente em momentos críticos como campanhas eleitorais ou grandes decisões políticas ou econômicas.

A neutralização das fake news enfrenta um dilema atroz. Em termos quantitativos já vimos que o esforço é materialmente hercúleo e estatisticamente frustrante. Do ponto de vista de opinião pública, o melhor recurso seria usar a mesma lógica dos falsificadores, ou seja, disseminar as notícias autênticas com a mesma velocidade, intensidade e estilo narrativo. Mas o impacto das notícias falsas é sempre maior porque seus autores apelam para o sensacionalismo, o que chama mais a atenção das pessoas.

Alguns institutos de verificação dos estados unidos procuram conferir tudo o que um candidato diz num evento eleitoral e como geralmente o volume de inverdades é grande, os checadores no máximo conseguem sinalizar falso ou verdadeiro, sem tempo e espaço editorial para justificar a decisão. Resultado, a margem de erro é grande, e basta flagrar um equívoco na checagem para que a confiança na instituição ou serviço fique abalada, anulando todo o esforço feito.

Alguns movimentos políticos, notadamente de esquerda, decidiram partir para o olho por olho, ou seja, fake contra fake. A estratégia visa tentar neutralizar s distorções informativas geradas pela avalancha de notícias falsas disseminadas pelos robôs gerando um fluxo contrário de informações também distribuídas automaticamente. Do ponto de vista técnico pode até ter funcionado, mas o recurso foi unanimemente condenado eticamente e informativamente. Aumento enormemente a confusão e desorientação de leitores, ouvintes, telespectadores e internautas.

Em resumo, estamos vivendo uma situação onde ainda não temos saídas claras a vista. As soluções técnicas desenvolvidas pela imprensa e por inúmeras instituições acadêmicas apresentam limitações e não podem sozinhas dar conta da hercúlea tarefa de acabar com a insegurança informativa gerada pelas notícias falsas. Paralelamente cresce o número de especialistas que veem no público a solução para o problema, mas isto exige o desenvolvimento de uma cultura informativa que não vai surgir da noite para o dia. Por isto, a velha receita da cautela e dúvida ainda é o melhor remédio para a pandemia das fake news.

(Texto publicado originalmente no jornal TOP)

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Carlos Castilho

Jornalista, pesquisador em jornalismo comunitário e professor. Brazilian journalist, post doctoral researcher, teacher and media critic