O jornalismo precisa ignorar a verborragia populista de Trump e Bolsonaro
A polarização e radicalização deflagradas por governos como o de Donald Trump, nos Estados Unidos, e de Jair Bolsonaro, no Brasil, empurraram a imprensa para uma situação muito delicada causada pela redução progressiva e, aparentemente irreversível, do espaço para isenção e neutralidade.
Isto está levando jornalistas dos dois países a terem que avaliar a possibilidade de uma clara tomada de posições políticas diante de dois governos de tendência ultraconservadora e que adotaram um olímpico desprezo pela imprensa. Ela é acusada de disseminar notícias falsas, quando jornais, telejornais, sites noticiosos na internet e páginas jornalísticas independentes ousam publicar fatos, dados e versões que contradizem a vontade de Trump e Bolsonaro.
O dilema dos jornalistas tende a se agravar ainda mais com a proximidade de eleições em 2020 nos Estados Unidos e no Brasil, porque a polarização e radicalização na política de ambos os países cria o ambiente adequado para que os partidos e candidatos recorram, de forma ainda mais intensa, ao uso das notícias falsas para confundir eleitores e alimentar o discurso do ódio.
A posição dos profissionais do jornalismo é diferente da assumida pelos empresários da comunicação. O compromisso com a honestidade informativa é parte estrutural na cultura da profissão, pois sem ela a função jornalística torna-se puro marketing eleitoral. Já para as empresas, qualidade da informação é apenas uma ferramenta para captar a atenção do público e com isto aumentar a visibilidade dos anúncios. Quando surge um conflito entre credibilidade e lucratividade, a última quase sempre ganha.
A combinação de radicalismo e desinformação na política cria um dilema complexo porque os profissionais enfrentarão uma forte demanda do público por informações confiáveis diante da quase certeza de que os candidatos não vacilarão em recorrer à distorção de informações e meias verdades como itens do seu discurso político.
Os factoides presidenciais
O compromisso do jornalismo com o público será submetido a uma das mais duras de todas as provas já impostas aos praticantes da atividade em tempos eleitorais. A sobrevivência da imagem de isenção e objetividade do jornalismo passa a depender de uma tomada pública de posição contra duas formas de governar que buscam sistematicamente chocar a opinião pública e a imprensa com declarações espalhafatosas, inverossímeis e até escatológicas.
É um recurso já usado anteriormente por muitos ditadores para ocupar a agenda pública da imprensa impedindo a discussão sobre temas mais sérios como a desigualdade social e o desemprego. A utilização abusiva de factoides e a demonização de posições divergentes está muito distante das preocupações reais do público com problemas como empobrecimento, saúde, educação, emprego e segurança pública.
Trata-se de uma modernização da velha máxima “falem mal de mim, mas falem de mim”, cunhada nos anos 60 do século passado pelo ex-governador paulista Adhemar de Barros, um politico populista e carismático, acusado de usar a corrupção como ferramenta eleitoral e a demagogia como estratégia de governo.
Ignorar a retórica politicamente incorreta de Trump e Bolsonaro é uma das opções postas diante dos jornalistas. Focar nos dilemas reais da população buscando oferecer soluções concretas a eles pode vir a ser um antídoto eficiente contra uma estratégia de comunicação que beneficia apenas os projetos de políticos e partidos empenhados em consolidar o seu poder.
Uma nova agenda noticiosa
O jornalismo preocupado com os princípios básicos da profissão é desprezado pela extrema direita que procura desvirtuar a imagem pública da profissão para induzir as pessoas a acreditarem numa realidade fictícia. Assim, a integridade profissional só poderá ser mantida caso haja uma opção por ignorar o cinismo de dois presidentes preocupados em transformar o processo político num espetáculo onde eles são as estrelas principais, usando as fake news e a escatologia.
Se os jornalistas não fizerem uma opção preferencial pela contextualização dos dados, fatos, eventos e ideias durante o período eleitoral, eles se transformarão em cúmplices do fortalecimento do populismo ultraconservador. Se o jornalismo pretende ser um guardião dos fatos, ele não tem alternativa no momento senão ignorar a verborragia de Trump e Bolsonaro para priorizar uma agenda baseada na realidade social dos respectivos países e vez do messianismo presidencial.
Não se trata de omissão e nem de enterrar a cabeça na areia. É a negação de uma estratégia de comunicação baseada no uso intensivo e intencional daquilo que o jornalismo pretende combater: a mentira.