O jornalismo perdeu espaço nos debates eleitorais

Carlos Castilho
4 min readNov 1, 2022

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Os debates entre candidatos se tornaram anacrônicos como programas informativos às vésperas de eleições. No máximo, podem agora ganhar ares de entretenimento ou fóruns para discussões técnicas sobre projetos de governo. Parece uma afirmação preocupada em provocar impacto, mas ela reflete uma realidade que atropelou o jornalismo, na medida em que não há mais condições de checar se as afirmações dos candidatos participantes em debates pela TV são falsas, distorcidas ou fora de contexto.

Foto Divulgação TV Bandeirantes

Os dois debates promovidos pela Rede Globo às vésperas do primeiro e segundo turno das eleições m 2022 mostraram claramente como o jornalismo foi impotente para cumprir sua missão de dar aos eleitores dados e fatos capazes de orientá-los na escolha em quem votar. Ambos os programas foram apresentados ao público como um evento jornalístico, o que induzia os eleitores a confiar no que seria transmitido ao vivo.

No primeiro debate, antes do primeiro turno, o apresentador William Bonner ficou perdido nomeio da metralhadora verbal dos sete candidatos à presidência da República, muitos dos quais mentiram, exageraram e omitiram impunemente. Além disso, vários participantes, como o autodenominado padre Kelmon, desobedeceram às regras do debate unanimemente aprovadas por todos os representantes dos candidatos.

Para que o programa pudesse receber o selo jornalístico, a cada mentira dita por algum candidato, Bonner deveria ter uma espécie de cartão vermelho para flagrar o delito, dando aos expectadores um indício do que poderia ou não ser confiável e importante para uma decisão de voto. Em caso de repetição, seria necessário afastar o mentiroso do debate para evitar a generalização do uso de afirmações falsas. Mas Bonner não é um juiz e sim um jornalista, logo estaria técnica e funcionalmente despreparado para lidar com uma inevitável judicialização do debate. Resultado: O apresentador praticamente perdeu o controle do primeiro debate.

Mediador ou mestre de cerimônias?

Escaldado pelos problemas surgidos no primeiro debate, o mediador global assumiu no encontro entre Lula e Bolsonaro, a figura de um mero mestre de cerimônias, com apenas uma intervenção. De resto seguiu burocraticamente o roteiro do programa, deixando aos candidatos participantes o controle do tempo, o rumo dos debates e a escolha dos temas. Ambos se acusaram reciprocamente de mentir, mas como era impossível checar rapidamente a veracidade dos dados e fatos mencionados, a estratégia mais usada foi a de mudar de assunto rapidamente, deixando muitas dúvidas no ar, restando ao público refugiar-se nas suas percepções previamente assumidas. Os pedidos de direito de resposta foram sistematicamente negados, como forma de evitar atritos com um ou outro contendor.

Na falta de preocupação jornalística, os debates tendem a se transformar em shows eleitorais, onde os candidatos se preocupam mais com performance do que com conteúdo. É natural que seja assim porque sem controle de credibilidade (checagem de dados e fatos mencionados) passa a valer a estratégia do impressionismo, em vez da persuasão. A grande preocupação é impressionar os telespectadores com gestos e afirmações impactantes para com isto influir na percepção das pessoas sobre se o debate foi bom ou ruim.

As emissoras de televisão promotoras dos debates procuram criar a expectativa de um combate, quase uma luta de box, onde a preocupação é saber quem ganhou e quem perdeu, sem levar muito em conta o fato de que o evento pode decidir o futuro do país e seus 230 milhões de habitantes pelos próximos quatro anos. Todo o glamour construído em torno programa está também condicionado pela preocupação com a captação de anúncios milionários para os intervalos publicitários e com o marketing de audiência.

Mas o empenho na espetacularização dos debates enfrenta a preocupação dos marqueteiros dos candidatos em evitar um knock out, ou seja, uma derrota inquestionável. O resultado são estratégias extremamente cuidadosas para evitar derrapadas de algum participante, o que contribui para a multiplicação de meias verdades ou mentiras completas, sem que seja possível flagrá-las. Os riscos são cuidadosamente evitados, o que torna o debate monótono para o telespectador condicionado a esperar um evento espetacular.

Finalmente há os defensores de debates focados prioritariamente em projetos de governo e em visões de mundo, uma discussão iminentemente técnica, mediada por um magistrado dotado de poder disciplinador para evitar a quebra de regras e os excessos verbais. Haveria um grande ganho no aprofundamento de propostas e ideias, mas uma perda de audiência, porque o programa dificilmente conseguiria atrair a atenção do público menos informado. Os especialistas acreditam que a audiência seria 2/3 menor do que a que assistiu o debate do dia 28 de outubro.

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Carlos Castilho
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Written by Carlos Castilho

Jornalista, pesquisador em jornalismo comunitário e professor. Brazilian journalist, post doctoral researcher, teacher and media critic

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