O jornalismo na Guerra da Cognição

Carlos Castilho
4 min readApr 9, 2022

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A expressão Guerra da Cognição (Cognitive Warfare, em inglês) ganha cada vez mais espaço no vocabulário dos estrategistas militares e marqueteiros políticos para marcar uma perturbadora mudança na forma como se desenvolvem os conflitos contemporâneos. O novo cenário de guerras e crises do século XXI passa a ser o cérebro humano, o que transforma todos nós em protagonistas diretos, na medida em que nossas opiniões e posicionamentos são usados como armas de combate.

Reprodução da capa do relatório Cognitive Warfare

Parece ficção cientifica, mas já é realidade conforme mostra o relatório Cognitive Warfare, um estudo realizado, em 2020, pelo Innovation Hub e patrocinado pelo Allied Command Transformation, ambos órgãos de assessoria da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Segundo o relatório, o controle do processo de condicionamento da opinião pública tornou-se um instrumento essencial na definição de qualquer confronto militar na era digital.

O condicionamento da opinião pública, ou seja, o processo pelo qual as pessoas atribuem significados a dados, fatos e eventos, depende do fluxo de informações, o que nos leva ao terreno do jornalismo. Os próprios autores do relatório Cognitive Welfare (CW) reconhecem este fato, ao destacar que todas as pessoas que acessam os meios de comunicação tornam-se alvos da guerra da cognição, que é mais ampla e mais profunda do que a Information War (IW sigla em inglês para Guerra da Informação).

A guerra de cognição é mais abrangente do que a guerra da informação porque esta última se preocupa apenas com o controle dos fluxos informativos enquanto a primeira busca controlar os mecanismos mentais usados pelas pessoas para processar informações. A guerra da cognição poderia ser comparada à estratégia militar de conquista de corações e mentes (Hearts and Minds no jargão inglês) só que usando um volume incrivelmente maior de informações e, portanto, com mais efetividade.

O documento afirma ainda que “…devido à rapidez e disseminação ampla das tecnologias de informação, a mente humana já não consegue processar todo o fluxo de dados (recebidos) …”, o que abre espaço para o emprego de técnicas de distorção das percepções e opiniões das pessoas. Os autores dizem ainda que “…as técnicas de Guerra da Cognição diferem das da propaganda pelo fato de que todo o público participa do processamento das informações, de forma inadvertida e sem precedentes.”

Exemplos concretos de CW

Para quem acha que tudo isto ainda é ficção, há três exemplos concretos de como funciona esta nova modalidade de guerra, que entre outras coisas não se limita apenas ao terreno militar. Todo o processo da Lava Jato seguiu estritamente os procedimentos da guerra da cognição, porque segmentos da justiça criaram um fluxo de informações baseado em denúncias de supostos atos de corrupção que mudou a percepção dos brasileiros sobre o governo Dilma, sobre Lula e o PT. Isto criou o ambiente adequado para que os políticos acionassem o impeachment de Dilma e deflagrassem um movimento de opinião pública que levou ao poder o capitão aposentado Jair Bolsonaro.

Agora na Ucrânia, a guerra do conhecimento explora o lado emocional do conflito com a Rússia. A estratégia dos Estados Unidos, o líder da OTAN, e dos países europeus busca maximizar o lado dramático do êxodo dos ucranianos fugindo da guerra e ao mesmo tempo construir a imagem do presidente Volodymyr Zelensky como líder heroico de uma resistência nacionalista. Estes dois objetivos são essenciais para o êxito da decisão ocidental de tentar derrotar o presidente Vladimir Putin por meio de retaliações econômicas e evitar o risco da nuclearização da guerra.

Outro caso famoso na literatura sobre guerra da cognição é a invasão norte-americana do Iraque, em 2003, que se tornou politicamente tolerável depois que a imprensa bombardeou o público mundial com informações sobre a existência de um arsenal de armas de destruição em massa controlado por Saddam Hussein. Saddam foi derrubado e morto, antes de se descobrir que não havia arsenal algum.

A participação do jornalismo

Nestes três casos, a guerra da informação, ao controlar os fluxos de notícias por meio da imprensa, preparou o terreno para o controle de corações e mentes (simpatias e opiniões) através da guerra de cognição. A imprensa foi mais do que uma testemunha destes eventos pois sua participação, voluntaria e involuntariamente, contribuiu para os desfechos pretendidos pelos estrategistas militares e civis.

Já não se trata mais de documentar jornalisticamente guerras como a da Ucrânia, mas de tomar consciência do envolvimento profissional naquilo que o relatório Cognitive Warfare destaca no seu prólogo: “…o que definirá uma vitória (militar ou política) será a capacidade de impor um comportamento desejável sobre uma determinada audiência”. Mais adiante afirma: “…Qualquer usuário das modernas tecnologias de informação é um alvo potencial, o que abrange todo o capital humano de uma nação”.

O jornalismo passou a ser um alvo na medida em que é a atividade que formata e dissemina as notícias que despertam a atenção das pessoas para o que está acontecendo na sua cidade, no seu país e no mundo. Todas as rotinas jornalísticas de cobertura de guerras terão que ser alteradas porque o mais importante estará por trás das imagens e declarações dos protagonistas. Isto vai obrigar os profissionais a um complexo trabalho de desconstrução das notícias produzidas pelos protagonistas de um conflito para identificar estratégias ocultas tanto na guerra da informação como na guerra da cognição.

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Carlos Castilho
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Written by Carlos Castilho

Jornalista, pesquisador em jornalismo comunitário e professor. Brazilian journalist, post doctoral researcher, teacher and media critic

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