O jornalismo na era da complexidade
A complexidade é a grande marca deste novo mundo em que estamos começando a viver e que se caracteriza pela superação de grande parte dos nossos hábitos, regras, crenças e valores vigentes até agora. Centros tradicionais de poder estão sendo contestados por uma quantidade crescente de movimentos sociais dos mais variados tipos. O processo de tomada de decisões torna-se mais complicado e demorado. A política parece que virou um grande circo. Surge um abismo entre a economia real e a economia financeira. A insegurança assola as cidades, surgem epidemias, variantes e tragédias sanitárias. Enfim, tudo fica muito confuso e as pessoas desorientadas.
Isto, obviamente, acabou afetando também o jornalismo e especialmente a forma da profissão lidar com a informação, atualmente a matéria prima mais valorizada no planeta e a base para entender a natureza das transformações pelas quais estamos passando. Só que o jornalismo ainda não acordou para o fato de que sua função na sociedade complexa é muitíssimo mais importante do que o papel desempenhado até agora na produção e comercialização de notícias.
Numa sociedade complexa, onde existem muitos movimentos sociais com interesses diversos, os avanços sociais dependem da tomada de decisões, porque do contrário é o caos. É na tomada de decisões que o jornalismo assume uma importância crítica, na medida em que é a principal ferramenta capaz de dar aos indivíduos dados e fatos com o devido contexto. Não se trata apenas da dar os dois lados, porque as situações passaram a ter muito mais do que apenas duas visões, por conta da quantidade de versões propagadas pela internet. A tese de ouvir os dois lados virou um anacronismo jornalístico porque falseia a realidade, mas a sua atualização num ambiente altamente diversificado informativamente ainda é uma meta a ser alcançada.
A complexidade na vida humana já existia antes, só que não conseguíamos percebê-la pelo reduzido volume de informações disponíveis na era analógico/industrial. As novas tecnologias digitais geraram o que hoje conhecemos como avalanche informativa, um fenômeno que deflagrou uma tal quantidade de dados que atropelou nossa capacidade de administrá-los e até de medi-los.
Não dá mais para imaginar qual o volume de um zettabyte de dados, o equivalente a um sextilhão de bytes, ou o digito 1 seguido de 21 zeros. Cálculos conservadores avaliam hoje em mais de 44 zettabytes o volume total de documentos digitalizados na internet aberta, aquela onde é possível fazer buscas com o Google e que representa apenas 4% do total de dados depositados nas chamadas deep web (acesso bloqueado por senhas) e dark web (o submundo digital).
Nós estamos apenas começando a sentir os efeitos da avalanche informativa no nosso dia a dia e nos nossos comportamentos sociais, políticos e econômicos. Tudo ficou e ficará muito complicado pelo incessante aumento de novos dados, fatos, eventos e ideias publicados a cada segundo na internet. Já estamos abandonando a crença de que nosso mundo estava dividido entre bons e maus, entre amigos e inimigos, feios e bonitos etc. As nuances entre extremos se tornaram quase infinitas e isto se reflete diretamente na complexidade da cobertura noticiosa do mundo contemporâneo.
E é claro, o jornalismo não está e nem ficará imune a toda esta transformação, cuja principal consequência no exercício da profissão não está apenas na complexidade dos novos softwares e equipamentos digitais usados na produção de notícias. O maior desafio está em como tratar os dados, fatos, eventos e ideias que afetam as necessidades e desejos das pessoas que dependem de notícias para tomar decisões de todos os tipos.
Viver a complexidade no exercício do jornalismo vai implicar uma mudança radical nos procedimentos, regras e valores da profissão, porque todo o arcabouço de normas e rotinas está sendo alterado, sem que, por enquanto, a maioria dos profissionais tenha se dado conta do que está acontecendo. São muitas as perguntas ainda sem respostas e seguramente ainda gastaremos muita saliva, papel e bytes para achar respostas convincentes.
Mas uma questão se sobressai às demais. E a evolução das ciências da cognição, alavancada pela digitalização, mostra que não existe mais uma única percepção sobre um dado, fato ou evento. Cada pessoa entrevistada ou consultada numa reportagem tem uma percepção própria da realidade porque temos diferentes histórias individuais. E como a internet permite que muitas pessoas expressem suas percepções sobre o aumento da inflação, por exemplo, o jornalismo foi colocado diante de um dilema atroz. Traduzir isto em narrativa jornalística é uma tarefa complexa e imprescindível que desafia os prazos para publicação e pode lançar o repórter num mar de versões contraditórias.
A atuação jornalística numa sociedade complexa inevitavelmente obrigará os profissionais a olharem para todos os quadrantes sociais com igual atenção e criticismo, contrariando o comportamento atual de privilegiar governantes, políticos, empresários e personalidades, aos quais se atribui maior credibilidade e confiabilidade informativa. Estamos entrando numa sociedade sem um centro claro e definido, onde os movimentos sociais começam a compartilhar a tomada de decisões com governos, políticos e organizações empresariais.
A emergência de movimentos como as campanhas antirracistas, as migrações internacionais de refugiados, a luta contra a desigualdade social a favor da igualdade de gênero, liberdade religiosa e contra a fome, só para citar alguns casos mais conhecidos, criou polos de poder e complicou enormemente os processos de tomada de decisões. O contexto social contemporâneo está cada vez mais fragmentado o que obriga os jornalistas a pesquisar muito antes de cobrir eventos relacionados a movimentos coletivos.
Os profissionais estão imprensados entre procedimentos antigos e realidades novas. Condicionados por uma rotina criada na era analógica e que privilegia uma visão dicotômica do mundo, a crença numa verdade incontestável, numa hierarquia de fontes dignas de crédito e em prazos determinados por modos industriais de produção de notícias em jornais, revistas, emissoras de rádio e TV. E, ao mesmo tempo, cobrados por novos atores políticos que exigem reconhecimento, credibilidade e participação no ecossistema informativo da sociedade. Trata-se de um desafio inédito nos quase dois séculos de existência do jornalismo profissional.