O futuro da imprensa está no jornalismo local

Carlos Castilho
6 min readMay 9, 2022

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Alguns de vocês podem achar que estou exagerando. Outros, que o título reflete interesses pessoais não identificados. Mas quem for até o fim deste texto verá que a nova conjuntura da comunicação mundial transformou o jornalismo local na melhor alternativa para atender às necessidades informativas da sociedade digital.

Foto Unplash / Creative Commons

Já não há mais dúvidas de que o modelo tradicional de produzir notícias a partir de grandes empresas está em crise, da qual apenas poucas delas sobreviverão. Também está cada vez mais evidente que a disseminação de fake news e da desinformação abalou drasticamente a credibilidade das pessoas nas notícias publicadas na imprensa. Além disso, as redes sociais na internet acabaram com o monopólio da imprensa na produção e disseminação de notícias.

Estas três manifestações mostram uma clara desestruturação da imprensa convencional e a inevitabilidade de uma reinvenção do jornalismo para atender o crescimento inédito na demanda de informações em todos os níveis da sociedade contemporânea. Está reinvenção do jornalismo é impulsionada por três grandes necessidades:

a) As pessoas precisam de informação para sobreviver e prosperar na era do conhecimento. Logo, a notícia precisa deixar de ser uma mercadoria na troca de atenção do público por publicidade paga, para se transformar num ingrediente insubstituível na produção de conhecimento individual e coletivo;

b) Os jornalistas já não têm mais o dom de saber o que as pessoas desejam ou precisam porque o mundo que nos cerca ficou muito complexo. Isto leva à necessidade de estabelecer uma nova relação entre profissionais e o público. Uma relação baseada numa parceria ao invés da dependência.

c) O modelo de negócios baseado na oferta de notícias como isca para atrair atenção das pessoas e de anunciantes já não é mais lucrativo. Há um dramático esforço para achar um novo sistema, mas o pouco que se sabe até agora é que não haverá um único modelo e que tudo vai depender da inserção do projeto jornalístico na realidade local.

As três exigências têm em comum o fato de estarem vinculadas a situações bem especificas. Não se trata mais do velho expediente de oferecer um mesmo produto noticioso para muitos consumidores, mas da necessidade da adequar múltiplas ofertas informativas à uma gama diversificada de indivíduos. Traduzindo em miúdos, significa produzir jornais com notícias que levem em conta as características do local para atender à necessidade de públicos específicos.

O jornalismo local é a modalidade de jornalismo que melhor consegue conjugar os esforços para tentar resolver tanto a busca de uma nova função da notícia, como a necessidade da parceria entre repórteres e o público, bem como da pesquisa de modalidades próprias de sustentação financeira. Vejamos porquê:

Notícia e conhecimento

Pesquisas feitas nos Estados Unidos e a experiência prática de jornalistas brasileiros têm mostrado que nas pequenas e médias cidades as pessoas procuram notícias sobretudo para resolver problemas concretos e não apenas pelo prazer de consumir ou de bisbilhotar a vida alheia (1). Notícias locais para saber onde se vacinar, mudanças no trânsito urbano, datas e locais de pagamentos, horários de ônibus e de atendimento em órgãos públicos, só para citar alguns.

É uma informação de caráter utilitário que será usada para tomar decisões, expressar insatisfação ou propor soluções, ao contrário de notícias sobre assassinatos, roubos, corrupção e escândalos, a matéria prima de rumores, boatos e desinformação. É uma nova forma de encarar a notícia voltada para a utilidade prática que ela terá para o cotidiano do ouvinte ou leitor.

Pode parecer pouca coisa, mas muda muito a rotina diária de repórteres, editores e fotógrafos que terão que ficar muito mais atentos ao que se passa nas ruas e bairros do que nas assessorias de imprensa da prefeitura, empresas e associações profissionais. O trabalho jornalístico será feito muito mais nas ruas do que nos escritórios e gabinetes.

O grande parâmetro para definir a validade ou não de uma notícia passa a ser a sua função na comunidade, em vez da sua capacidade de atrair anúncios pagos.

Parceria jornalista / público

Para que a notícia possa cumprir com sua função no processo de produção de conhecimento pelos membros de uma comunidade local, é indispensável haver uma integração entre profissionais e o público, conforme mostram várias pesquisas acadêmicas realizadas nos Estados Unidos e Europa (2). É o que ficou conhecido como engajamento social do jornalismo.

Para poder atender à diversidade de problemas e desejos dos habitantes de cidades, mesmo pequenas, o jornalista precisa ter dados e isto ele só consegue através do contato direto com o público. Nesta relação, a confiança é essencial para os dois lados. As pessoas precisam confiar na capacidade e empenho do profissional em formatar um dado, fato ou evento para atrair a atenção dos demais membros da comunidade. O jornalista, por seu lado, precisa confiar nos seus interlocutores para não divulgar fake news ou boatos.

Minha experiência num projeto de jornalismo local numa cidade de 40 mil habitantes mostra que a parceria com o público leva algum tempo para acontecer, porque a iniciativa de conquistar credibilidade tem que partir primeiro do jornalista. Mas uma vez estabelecida, ela consegue superar eventuais mal-entendidos e principalmente serve de base para a sustentabilidade financeira.

O desafio das finanças

Todo projeto de jornalismo local tem dois momentos cruciais: o seu lançamento e a hora em que o dinheiro acaba. Começar hoje um jornal online comunitário exige muito menos recursos do que na era analógica, quando tudo tinha que ser impresso e distribuído. A maioria dos novos projetos começam com mais boa vontade e entusiasmo do que com dinheiro. Quase todos acham que o problema financeiro será resolvido com o sucesso do projeto (3).

Mas chega um momento, em geral depois dos primeiros 200 dias de existência, em que, apesar do sucesso do projeto junto ao público, os que produzem o jornal ou programa de rádio, com salários simbólicos ou sem salários, já não conseguem mais pagar suas contas pessoais. É a fase dos abandonos ou das divergências, e aí a coisa pega.

Na minha avaliação e na de muitos outros que embarcaram na aventura de projetos jornalísticos locais pela internet, a questão financeira tem que ser pensada desde a primeira reunião para planejar o que será produzido. É uma decisão muito difícil porque envolve explorar um espaço desconhecido e enfrentar duas atitudes opostas. Enquanto os preparativos são movidos por otimismo, a busca da sustentabilidade financeira alimenta o pessimismo.

Qualquer projeto terá que encontrar o seu próprio modelo de sustentabilidade já que cada localidade tem características próprias que influem decisivamente no tipo de ação a ser escolhida para captar assinaturas, doações, escambos e financiamentos. Várias empresas norte-americanas já fracassaram na tentativa de aplicar uma mesma fórmula para cidades diferentes. O que funciona para uma comunidade dificilmente poderá ser transplantado para outras.

A combinação dos três fatores mencionados acima (notícia, engajamento e sustentabilidade) permite que o jornalismo local alimente a agenda de discussões entre moradores de pequenas ou grandes cidades. A profissão é insubstituível nesta função, em especial na era digital quando a informação passou a comandar nossas vidas. Isto transformou repórteres, editores, influenciadores e programadores em personagens obrigatórios em qualquer comunidade social.

(1) Sobre a definição de uma nova função da notícia, sugiro o seguinte link para quem desejar mais dados: Notícias digitais como formas de conhecimento: um novo capítulo na Sociologia do Conhecimento : http://dx.doi.org/10.19132/1807-8583202152.96916

(2) Para mais detalhes sobre a questão do engajamento jornalismo/público, sugerimos os seguintes links:

a) https://medium.com/lets-gather/to-do-deep-community-engagement-you-cant-just-buy-a-tool-128d00cc2f20

b) https://medium.com/lets-gather/the-continuum-of-engagement-89778f9d6c3a

c) https://cronkitenewslab.com/digital/2021/02/11/thinking-beyond-the-buzzword/

d) Conceptualizing the Active Audience: Rhetoric and Practice in “Engaged Journalism” https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1464884920934246

(3) Sobre sustentabilidade financeira em novos projetos jornalísticos online:

a) To Protect and Extend Democracy, Recreate Local News Media — https://www.freepress.net/sites/default/files/2022-03/to_protect_democracy_recreate_local_news_media_final.pdf

b) Public Investments for Global and Local News — https://www.cigionline.org/articles/public-investments-global-news/

c) Survival Tips for Nonprofit Newsrooms — https://gijn.org/2019/11/11/survival-tips-for-nonprofit-newsrooms-fundraising-membership-and-sustainable-models/

d) The Commercial era for local journalism is over — https://www.niemanlab.org/2020/12/the-commercial-era-for-local-journalism-is-over/

e) What does it mean to be a “sustainable” news business? — https://www.lionpublishers.com/what-does-it-mean-to-be-a-sustainable-news-business/

f) What it takes to shift a news organization to reader revenue — https://www.americanpressinstitute.org/reader-revenue/what-it-takes-to-shift-a-news-organization-to-reader-revenue/

P.S. Tenho mais fontes que podem ser disponibilizadas para quem desejar.

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Carlos Castilho
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Written by Carlos Castilho

Jornalista, pesquisador em jornalismo comunitário e professor. Brazilian journalist, post doctoral researcher, teacher and media critic

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