O fim do “casamento” entre jornalismo e empresas jornalísticas
A centenária dependência do jornalismo em relação às empresas jornalísticas está chegando a um ponto de ruptura que provocará mudanças profundas nos comportamentos, regras e valores que durante muito tempo organizaram a produção de notícias, no mundo inteiro. É muito difícil achar um jornalista que não tenha vivido, alguma vez, o conflito entre sua visão do jornalismo, como uma atividade criativa e a lógica financeira das empresas onde ele exerce sua profissão.
A grande mudança é o fato dos jornalistas começarem a perceber que já não precisam mais das empresas jornalísticas para exercer a sua profissão. O fim desta dependência, marcada pelo surgimento de milhares de projetos noticiosos autônomos em todo o mundo, ainda não foi totalmente assimilada pelos profissionais e suas consequências continuam indefinidas diante da complexidade do processo.
A universalização das novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) mostrou como as rotinas, normas e valores do jornalismo perderam consistência e utilidade à medida que a digitalização foi se tornando cada vez mais presente e indispensável à produção de notícias, reportagens e comentários. Até agora, o jornalismo, mesmo se definido teoricamente como uma atividade criativa com função social, era forçado a depender de organizações empresariais para imprimir ou transmitir seu trabalho informativo. Os custos de impressão e difusão por rádio e TV implicavam investimentos elevadíssimos e uma complexa estrutura gerencial, fatores inalcançáveis por um profissional autônomo e independente.
A dependência empresarial custou caro ao jornalismo porque o obrigou a assimilar os padrões corporativos no quotidiano profissional. Repórteres, editores, produtores, técnicos, programadores, apresentadores e comentaristas tiveram que se submeter aos condicionamentos da produção em linha de montagem, onde todos dependem de todos para que uma notícia chegue até o público.
A corporativização do jornalismo
Neste processo de corporativização do jornalismo, a preocupação com a criatividade e investigação de fatos, dados e eventos acabou sendo atropelada pela necessidade de minimizar custos por meio da padronização para alcançar o maior número de pessoas ao menor preço possível. No caso da rádio e televisão, quanto maior a audiência, maior a receita publicitária.
A vinculação do jornalismo à empresa fez com que as características criativas do exercício da profissão acabassem sendo alteradas pela cultura da linha de montagem, típica das corporações industriais. Com isto, os profissionais autônomos e independentes perderam espaço e possibilidades de inovar na produção de conteúdos noticiosos em favor de equipes numerosas.
O fator econômico acabou prevalecendo sobre as características especiais do jornalismo, uma atividade mais próxima da literatura, por exemplo, do que a de um operário fabril. Isto condicionou também as rotinas, normas e valores da atividade jornalística. Procedimentos como, por exemplo, a concorrência pela notícia inédita (furo) tornaram-se uma norma pela exigência empresarial de aumento das vendas para maximização das receitas. Em nome da urgência e do ineditismo , a ética foi sacrificada com frequência crescente.
O crescimento do ambiente digital no campo da informação está provocando a quebra de quase todos os paradigmas que durante quase dois séculos normatizaram a atividade jornalística. O principal deles, e o que nos interessa aqui neste texto, é a fantástica redução nos custos de publicação em texto, áudio ou imagens de notícias, reportagens e documentários. Com isto, diminuiu muito a dependência estrutural e financeira dos jornalistas em relação às empresas no cumprimento da missão de informar o público e dar-lhe condições de exercer os seus direitos políticos, sociais e econômicos.
O fim da simbiose entre jornalistas e empresários dá inicio a um processo complexo e imprevisível porque ambos estão tendo que reinventar procedimentos, normas e até mesmo alguns valores. As empresas saíram na frente e estão sendo mais rápidas na experimentação de novos modelos de negócios, principalmente novas fontes de renda, embora os desafios ainda sejam muitos. Os jornalistas recém começaram a se dar conta de que não basta a habilidade no manejo das ferramentas digitais para lograr uma nova reinserção na sociedade da informação.
A produção empresarial no campo da informação continua amarrada ao princípio da produção em massa como instrumento para reduzir custos. É a lógica do um para muitos, o que implica uma padronização de conteúdos como forma de assegurar lucratividade, apesar da internet favorecer estratégia do muitos para muitos, por meio da diversificação e segmentação da produção informativa.
As empresas até que apostaram inicialmente na convergência das plataformas de publicação ( multimídia) por meio de fusões e compras de empresas, mas logo depois voltaram a priorizar a segurança financeira através da produção segmentada, como mostrou o caso do jornal The New York Times. As corporações midiáticas digitais ainda não descobriram o seu novo modelo de negócios, mas há um consenso crescente de que ele passa pelo incremento e gestão das audiências, o que implica uma mudança radical no relacionamento com o público, que deixa de ser visto apenas como um consumidor para ser tratado como um parceiro proativo.
Uma ruptura caótica
Para os jornalistas, o grande dilema passa a ser a sobrevivência financeira no ambiente digital, onde tudo é novo, muda rapidamente, a sustentabilidade econômica ainda é um enigma e o público, a maior de todas as incógnitas. Os profissionais acostumados a rotinas seguras e conhecidas, agora enfrentam diariamente o caos do desconhecido e a exigência de uma criatividade permanente. Enfim, ser jornalista hoje, equivale a conviver com a incerteza e a insegurança, o que implica uma revisão profunda de normas e valores.
Nós, jornalistas, estamos sendo obrigados nos acostumar com o trabalho coletivo em equipes formadas por profissionais com diferentes especializações e que se agrupam temporariamente em função de projetos e não mais de empregos fixos. A estabilidade do trabalho em redações está se tornando mais uma exceção do que uma regra, como acontecia até agora. Uma reportagem multimídia é o resultado do conjunto interativo de habilidades e competências de um conjunto de profissionais e não mais o produto de um único repórter.
O dia a dia desta ruptura de paradigmas jornalísticos é muito mais complexo do que parece. Os profissionais, que estão buscando formas de sobreviver ao tsunami tecnológico, são levados a usar o processo do erro e acerto por falta de tempo e condições para pesquisar alternativas. Já os pesquisadores acadêmicos e professores de jornalismo ainda continuam influenciados pela norma de que o jornalismo depende da existência de empresas lucrativas, pois a maior parte dos currículos está orientada para a formação de quadros para o mercado corporativo de empregos.
Mas já surgiram vozes discordantes na academia. O professor holandês Mark Deuze, da universidade de Amsterdam, e autor de vários livros sobre jornalismo na era digital, fez um mea culpa público num artigo publicado na revista Social Media + Society, onde afirma: “Eu não acredito mais que a indústria da notícia, da forma como ela tradicionalmente está organizada, seja indispensável para que o jornalismo consiga sobreviver e continuar relevante para a vida das pessoas”.
Deuze adverte que o maior desafio agora envolve duas grandes preocupações:
a) Convencer os profissionais que eles não precisam mais da “bengala corporativa” para exercer sua função social como curadores da informação e;
b) Estimular a academia a ver o jornalismo como uma atividade criativa, num ambiente caótico cujas regras variam constantemente e onde o profissional precisa se acostumar a conviver com a incerteza, complexidade e insegurança.