O colonialismo de dados prepara a versão digital do capitalismo

Carlos Castilho
4 min readOct 27, 2018

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Uma nova forma de exploração colonial começa a ganhar corpo na medida em que baixa a poeira do fascínio tecnológico e aumentam as preocupações com as consequências sociais, politicas e econômicas da massificação das inovações na área da comunicação e informação.

Ilustração Pexels / Creative Commons

A ideia de uma nova forma de colonialismo, agora na era digital, surge a partir da constatação das mega fortunas acumuladas por empresas que captam, arquivam, processam e vendem dados obtidos, sem custo, de usuários da internet. Segundo pesquisadores como o britânico Nick Couldry, estamos começando a vislumbrar também uma nova modalidade de capitalismo alimentada não mais por bens materiais como minérios, petróleo e alimentos, mas pela comercialização de dados do quotidiano das pessoas.

A literatura acadêmica anglo saxã usa a expressão “data colonialism”, que ainda não tem uma tradução consensual em português mas pode ser equivalente a colonialismo de dados ou colonialismo baseado em dados. Por enquanto o tema ainda está restrito a algumas universidades europeias, mas o debate começa a transferir-se também para outras regiões como Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos.

A fascinação globalizada pela descoberta de fenômenos como os “grandes dados” (big data em inglês) e “internet das coisas” (internet of things –IoT) é alimentada pelas fantásticas possibilidades surgidas em consequência do que os especialistas definiram como datificação, ou seja, o registro digitalizado de quase todas as atividades humanas, transformadas em combinações de zeros e uns.

Nosso quotidiano já está sendo registrado de forma contínua em bancos de dados. É o que acontece com nossas compras no supermercado, nossos relacionamentos em redes virtuais, preferências políticas, ideológicas, literárias, cinematográficas, teatrais, gastronômicas, afetivas, turísticas , sem falar nas nossas consultas médicas, seguro saúde , compras na farmácia, atividade bancária etc etc.

Tudo isto forma o fenômeno que ficou conhecido como “grandes dados”, uma avalancha de dados nunca vista na história da humanidade, e que se expande de forma contínua graças a aperfeiçoamentos como a interação entre algoritmos incorporados a diferentes artefatos usados por seres humanos nas suas atividades diárias em casa, no trabalho, no estudo, transito e lazer, para mencionar só as mais frequentes. Esta conversa entre algoritmos é a base de outro fenômeno chamado “internet das coisas”, onde uma geladeira troca dados de seu dono como o proprietário da mercearia, ou o seu carro manda informações diretamente para o montadora ou para a oficina.

Inevitavelmente, um capital informativo desta magnitude passou a movimentar empresários interessados em obter lucros por meio da venda de produtos e serviços desenvolvidos partir de dados deixados por usuários da internet em pesquisas, compras e relacionamentos. A empresa Google, por exemplo, oferece desde 1998 um serviço gratuito de buscas na internet, e usou os dados deixados por milhões de usuários para desenvolver uma gama enorme de outros serviços que ao serem comercializados geram um faturamento global de 105 mil dólares por minuto.

Uma montanha de dinheiro

Em 2017 , a receita bruta da Google em todo o mundo foi de 109,65 bilhões de dólares , maior do que o PIB de 127 países, no ranking organizado pelo Banco Mundial com dados de 2017. E estamos falando apenas numa das cinco maiores empresas do mundo digital (Amazon, Microsoft, Apple, Facebook e Google) , cujas receitas brutas somadas, em 2016, foram estimadas em pouco mais de meio trilhão de dólares norte-americanos, pouco mais do que o PIB da Suécia no mesmo ano.

Toda esta montanha de dinheiro teve origem, fundamentalmente, em dados obtidos de usuários, configurando um novo tipo de mais valia diferente daquela consagrada por Karl Marx no seu livro O Capital. Nick Couldry, que vai lançar no início do ano que vem o seu livro The Cost of Connections (O custo da conectividade), afirma que a expressão data colonialism explora uma nova dimensão do capitalismo agora num contexto digital, por meio da conversão da vida diária dos cidadãos num fluxo constante e universal de dados. Trata-se de um recurso imaterial que é hoje tão valioso quanto o petróleo e os minerais atômicos.

Numa apresentação do livro, feita agora no começo de outubro, em Montreal, no Canadá, Couldry afirmou:

“As pesquisas sobre a internet precisam incluir também a análise de como as formas contemporâneas de extração e processamento de dados reproduzem o modo colonial de exploração. Usando a macro sociologia do capitalismo como procedimento de pesquisa, apresentamos o conceito de “data colonialism” como uma ferramenta para analisar formas emergentes de controle politico e exploração econômica…Nossa análise envolve disciplinas como crítica da economia política, sociologia da mídia, estudos pós-coloniais e sobre tecnologia para estabelecer a continuidade da histórica apropriação colonial de territórios e recursos materiais até a atual datificação de nossa vida cotidiana. Afirmamos que embora as modalidades, intensidades, escalas e contextos tenham mudado, o principio básico continua o mesmo: apropriar-se de recursos dos quais se pode extrair valor econômico. Da mesma forma que o colonialismo histórico pavimentou o caminho para o capitalismo industrial, o colonização dos dados digitais prepara o caminho para uma nova ordem econômica”…

O professor e pesquisador mexicano Ulisses Mejias, co-autor do livro The Cost of Connections, defende a necessidade de iniciar o que chamou de “descolonização dos grandes dados” por meio da negação da ideia de que a apropriação e utilização de dados obtidos de usuários da internet é um procedimento “natural e inevitável” na produção de conhecimento humano, quando na verdade é uma forma comercial de extração de dados movida por interesses econômicos e políticos.

Os colonizadores europeus na América Latina, África e Ásia, nos séculos XV e XVI, justificavam sua ação predatória alegando que era irracional deixar inexploradas as riquezas naturais existentes nestes continentes. Seguindo a mesma lógica, na era digital, também seria irracional deixar inexplorada a avalancha de informações sobre o quotidiano das pessoas. Para Couldry e Mejias, a descolonização dos dados visa evitar que os seres humanos acabem vítimas do que já está sendo qualificado como uma “ditadura baseada em dados”.

(*) Texto publicado originalmente no site objETHOS

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Carlos Castilho

Jornalista, pesquisador em jornalismo comunitário e professor. Brazilian journalist, post doctoral researcher, teacher and media critic