Imunidade cognitiva: um desafio para o jornalismo
Estamos hoje enfrentando não uma, mas duas batalhas por imunidade contra situações que ameaçam nossa existência. A luta contra o vírus está em todas as manchetes da imprensa e nas redes sociais. Gera manifestações, provoca crises políticas e faz muita gente sofrer. A outra batalha, já afeta boa parte da humanidade. Aparece periodicamente na política, especialmente antes de eleições. Quase não é discutida nos jornais e na internet mas, potencialmente, pode lotar cemitérios, a exemplo da Covid 19.
Estamos falando da chamada imunidade cognitiva, uma expressão que já foi sinônimo de fanatismo, mas que hoje é vista como a “vacina” mais eficiente contra a desinformação e as notícias falsas. O uso da metáfora imunidade é perfeita para o caso da informação porque embora as causas e o contexto em que ocorre sejam muito diferentes, o processo de desenvolvimento é igual e as consequências muito parecidas.
Da mesma forma que o coronavírus e suas variantes tentam invadir células humanas para provocar problemas pulmonares que levam a óbito, o “vírus” da desinformação tenta invadir o universo cognitivo das pessoas para gerar desorientação e insegurança, capazes de levar a atitudes letais. A principal diferença é que o coronavírus mata relativamente rápido enquanto a desinformação e as notícias falsas podem tardar anos antes de causar mortes.
A expressão imunidade cognitiva já é conhecida desde a metade dos anos 90 no século passado, quando ela era usada para definir o comportamento de pessoas refratárias a concepções e práticas diferentes. Era um conceito sofisticado empregado em debates intelectuais para substituir palavras mais duras como fanatismo, xenofobia e sectarismo. Basicamente se referia a casos em que indivíduos e grupos de pessoas desenvolviam mecanismos mentais para impedir sua contaminação por idéias e atitudes consideradas subversivas.
A contaminação informativa
Os epidemiologistas e infectologistas sabem que a periculosidade de um vírus aumenta quando o organismo humano sofre mudanças, como por exemplo, alguma deficiência crônica, doença passageira, subnutrição, etc. A mudança sempre gera algum tipo de debilidade que afeta as defesas imunológicas do organismo humano e, consequentemente, facilita o ataque viral.
Fenômeno similar acontece no campo da cognição humana, área que trata do conhecimento e informação das pessoas. Quando a humanidade entrou na era digital uma das primeiras consequências foi a chamada avalanche noticiosa, a mais radical mudança do nosso universo informativo desde a invenção da impressora de Gutemberg. Isto, é claro, gerou uma enorme incerteza entre produtores, distribuidores e consumidores de informações, criando condições para o atual surto avassalador de notícias falsas e desinformação.
Da mesma forma que a pesquisa sobre as origens e o modus operandi do coronavírus serviu para estabelecer as estratégias de prevenção e a produção de vacinas, também a desinformação precisa passar pelo mesmo processo de desconstrução e imunização. A diferença é que no caso de vírus como o Ômicron, o inimigo é material, pode ser representado e visto em microscópio. No caso da informação, ela é imaterial e seu poder contaminador é muito difícil de identificar, logo mais complexo e sujeito a diferentes percepções e medidas “terapêuticas”.
As profissões da linha de frente no combate ao coronavírus já estão perfeitamente definidas, com responsabilidades claras e objetivos concretos. No caso da desinformação, o jornalismo tem todas as condições para ser o principal agente executor de estratégias imunizadoras, mas ele ainda não foi reconhecido como tal, porque há uma confusão entre o papel dos profissionais e o das empresas de comunicação social.
As empresas tentam assumir o protagonismo no combate às fake news mais preocupadas com o marketing da credibilidade para valorizar sua principal commodity, a notícia. Os governos se apresentam como defensores da imunidade cognitiva, mas não conseguem disfarçar o desejo de usá-la para melhorar sua imagem pública. Idem para os poderes legislativo e judiciário, que até podem ter boas intenções, mas estão desaparelhados para lidar com um problema quase impossível de ser normatizado com leis e vereditos.
A busca da imunidade cognitiva é, por natureza, um esforço não comercial porque o objeto da sua ação é um conjunto de ações, regras e valores, destinados a imunizar o público consumidor de notícias contra a desinformação e a contaminação por fake news. A notícia é a mais popular e diversificada porta de entrada para a produção de conhecimento pelas pessoas comuns, e como o jornalismo é a profissão especializada na produção de notícias, cabe a ele um papel relevante e insubstituível na condução da campanha pela imunidade cognitiva.
Cabe ao jornalismo, acima de tudo, impedir que a “vacinação” contra a desinformação se transforme num bate-boca estéril entre diferentes percepções da realidade, tipo copo meio cheio ou meio vazio. Ou vire uma ferramenta marqueteira de empresas jornalísticas interessadas em dar sobrevida ao seu negócio, em meio à crise no modelo de sustentabilidade financeira. Não é uma tarefa fácil e muito menos simples, mas é insubstituível e inadiável.
A biologia da desinformação
O primeiro desafio do jornalismo é reconhecer e assumir que a imunidade cognitiva é um esforço complexo e que, portanto, não admite posições tipo bom ou ruim, certo ou errado, etc. Segundo ,que não é uma iniciativa rápida, pois a adoção de novos comportamentos, regras e valores toma tempo conforme mostram pesquisas e experiências acadêmicas. Terceiro, o processo se baseia mais na adesão do que na imposição.
Embora não seja formalmente uma organização jornalística, o Laboratório de Inteligência Digital (Digital Intelligence Lab), do Instituto do Futuro (Institute for the Future — IFtF) largou na frente no debate sobre a nova forma de tratar a imunidade cognitiva por meio de um projeto Building a Healthy Cognitive Immune System (Construindo um Sistema Saudável de Imunização Cognitiva).
O projeto desenvolveu uma forma gráfica de analisar a desinformação e produziu um polêmico estudo intitulado The Biology of Desinformation (A Biologia da Desinformação) procurando aprofundar a metáfora biológica da desinformação através de memes, vírus digitais e inoculação cultural. Um artigo publicado pela diretora executiva do IFtF propõe cinco iniciativas para promover a imunização informativa:
a) Promover a criação de redes ou plataformas sociais públicas onde não haja preocupação com a geração de lucros através da publicidade, como acontece com redes como Facebook, Google e Twitter;
b) Um sistema independente de monitoramento das redes sociais privadas de forma a garantir a imunidade cognitiva dos seus usuários;
c) Transformar os dados pessoais em bens individuais ou públicos, sem caráter comercial, o que eliminaria a tentação do lucro e da inevitável manipulação desinformadora;
d) Desenvolvimento de projetos de educação midiática centrados na leitura crítica, preocupação analítica e na capacidade contextualizadora de dados, fatos e eventos noticiosos;
e) Criar sistemas de alerta sobre as consequências cognitivas de novas plataformas de informação e comunicação, como o projeto Metaverso, do Facebook.
São propostas ambiciosas que dificilmente poderão ser alcançadas no curto prazo, mas de qualquer maneira funcionam como uma sinalização para o debate, este sim urgente e inadiável porque o vírus da desinformação tende a ganhar do Ômicron em matéria de velocidade de contaminação.