Imprensa pode dar um tiro no pé na cobertura política da extrema direita

Carlos Castilho
3 min readOct 6, 2024

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A imprensa pode estar dando um tiro no pé quando coloca objetivos comerciais acima dos princípios éticos e políticos na cobertura de candidatos ligados a partidos e movimentos de extrema direita em diferentes países do mundo. Esta possibilidade ganha relevância quando se compara o tratamento dado pela mídia brasileira ao ultraconservador Pablo Marçal e com o comportamento de grandes jornais europeus e norte-americanos que deram visibilidade mundial ao então obscuro Adolf Hitler, na Alemanha, nos anos 30 do século passado.

Foto Wikimedia Commons

A maioria dos grandes jornais mundiais tem dado ampla cobertura à emergência de políticos e movimentos de extrema direita, alguns dos quais não disfarçam sua inspiração nas ideias nazistas. Ao tomar esta atitude, contraria ao discurso liberal democrático adotado pela maioria dos grandes grupos midiáticos globalizados, a imprensa parece ignorar as mudanças provocadas pela internet e pela digitalização na formação da opinião pública.

A opção pela mentira, fake news, agressividade verbal, desafio aberto a cultura tradicional e contestação de regras eleitorais fazem parte da estratégia de atrair audiências acostumadas a dar atenção a tudo que foge do rotineiro. Mais público, mais anúncios e mais receitas, numa era em que as mídias vivem angustiantes incertezas sobre sua sustentabilidade e sobrevivência futuras.

Não é uma estratégia nova. Este mesmo comportamento esteve por trás da agenda noticiosa de grandes jornais como o The New York Times que, nos anos 30 do século passado, publicaram matérias, pretensamente neutras, mas que acabaram dando visibilidade e ocultando a natureza autoritária, racista e expansionista do criador do nazismo. É o que mostra o livro Berlim 1933, (1) do escritor alemão Daniel Schneidermann, autor de vários trabalhos sobre o papel da imprensa mundial na ascensão de Hitler ao poder.

A batalha da atenção

Politicos extremistas como os brasileiros Jair Bolsonaro e Pablo Marçal, assim como Donald Trump, o argentino Javier Milei, o salvadorenho Nayib Bukele e o húngaro Viktor Orbán, transformaram a contestação ao modelo liberal democrático como sua principal arma publicitária para ganhar a simpatia de cidadãos frustrados por sucessivas decepções políticas causadas por governos tanto de esquerda como de direita. Hitler usou o mesmo expediente para conquistar o coração de alemães empobrecidos pelas drásticas punições sofridas após perderem a Primeira Guerra Mundial, em 1918, para ingleses e franceses. E deu no que deu, 25 anos depois.

Agora, com a avalanche noticiosa, com a informação em tempo real e a interatividade globalizada nas plataformas digitais, o condicionamento das percepções do público se tornou imensamente mais rápido e amplo. A imprensa não está sozinha neste processo porque convive, alimenta e retroalimenta os chamados influenciadores digitais, personagens novos no mundo da comunicação. Mas a ela cabe o papel de ser a referência em matéria de confiabilidade informativa.

Quando a imprensa coloca objetivos comerciais em primeiro lugar, ela cria um padrão noticioso capaz de neutralizar o efeito da desconstrução das chamadas fake news (notícias falsas). Gerar impactos midiáticos passou a ser a estratégia padrão da extrema direita mundial que usa a atenção despertada junto ao público para neutralizar o efeito da desconstrução de noticias falsas e da desinformação. Uma fake news impressiona sem exigir muito esforço mental, enquanto a sua desconstrução requer algum tempo para reflexão.

O dilema da imprensa

A imprensa contemporânea vive um momento extremamente delicado por conta da crise no seu modelo de negócios causada pelas inovações tecnológicas digitais. É, portanto, compreensível que ela tente explorar todas as possibilidades capazes de reduzir os efeitos de uma lenta degradação de seus ativos materiais e imateriais. Mas isto implica um risco enorme tanto para a instituição imprensa, como principalmente para seu público-alvo. Hitler, e outros admiradores seus, já mostraram ao longo da história recente que a omissão da imprensa na identificação de tendências autoritárias, xenófobas e imperialistas acaba sempre se voltando contra a mesma imprensa.

Obviamente, os grandes conglomerados jornalísticos do mundo estão diante de uma opção complicada em que devem escolher entre o presente e o futuro. De um lado, está a sobrevivência financeira imediata e a manutenção da influência política, enquanto do outro, está a fidelidade ao compromisso com a produção de notícias capazes de gerar conhecimentos socialmente relevantes. A cobertura das campanhas eleitorais em 66 países e mais a União Europeia mostrou que, na maioria absoluta dos casos, a imprensa optou pela sua sobrevivência imediata.

(1) Disponível em francês em https://www.amazon.com/Berlin-1933-presse-internationale-Hitler/dp/2021369269/ref=sr_1_1

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Carlos Castilho
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Written by Carlos Castilho

Jornalista, pesquisador em jornalismo comunitário e professor. Brazilian journalist, post doctoral researcher, teacher and media critic

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