E agora Lula?
A soltura do ex-presidente corrigiu um grave erro político e jurídico, mas não sinalizou um novo rumo para o debate sobre o futuro do país, pelo menos por enquanto. Os dois pronunciamentos feitos por Lula depois de passar 580 dias numa sala da Polícia Federal, em Curitiba, mostraram que ele decidiu apostar em questões passadas, em vez de focar em desafios atuais que tendem a se tornar trágicos muito em breve.
Durante um ano e sete meses, Lula se preocupou em se associar a sua imagem pessoal ao que ele definiu como “uma ideia”, ou seja, um projeto politico de esquerda sem uma definição clara. Mas quando abandonou o prédio da Polícia Federal, em Curitiba, no dia 8 de novembro, ele preferiu usar o termo “missão” para caracterizar seus planos futuros, marcando uma mudança na forma como o ex-presidente vê a sua volta à arena político-partidária do país.
Lula começou a cumprir sua pena de oito anos, 10 meses e 20 dias num momento de profunda radilização ideologica e polarização politica. Ao sair livre, parte do antagonismo entre direita e esquerda havia sido suplantada pela crescente preocupação sobre dois problemas ligados à infraestrutura do país e cujas consequências a médio e longo prazo podem ser catastróficas: a abissal desigualdade socioeconômica no país e a impressionante massa de brasileiros desempregados, subempregados e dos que perderam a esperança de conseguir trabalho fixo, num total que já chega perto dos 30 milhões de pessoas.
Perto da magnitude da desigualdade e do desemprego, o bate- boca ideológico e a disputa do poder politico por partidos passa a ser uma briga por interesses imediatista, que ignora a proximidade de um abismo social e econômico. Bolsonaro e os ultraconservadores brasileiros estão mais preocupados em manter o controle do poder executivo e dos setores chaves da economia. Sua preocupação com o futuro se limita às questões que podem afetar as posições atuais, como mostram as decisões mais recentes da equipe econômica e do clã familiar que ocupa o Palácio do Planalto.
No pacote de reformas econômicas apresentado pelo ministro Paulo Guedes na primeira semana de novembro, desemprego e desigualdade figuram mais como preocupações marqueteiras do que como projetos consistentes e que vão às origens de cada problema. Teoricamente, isto deixa espaços políticos livres na agenda pública de debates para os simpatizantes do lulismo e de outros grupos oposicionistas como PSOL, Rede, PCdoB e PDT. A desigualdade e o desemprego, por sua natureza estrutural incorporam menos paixões ideológicas do que o bate boca sobre corrupção, eleições e prisões em segunda instância.
O paradoxo de Davos
Se a oposição decidisse colocar ambos temas como prioridade absoluta na agenda parlamentar, pela evitaria a radicalização o que poderia ajuda-la, num momento em que há uma ausência de propostas inovadoras por parte dos partidos e movimentos de esquerda, especialmente do Partido dos Trabalhadores, hoje quase que totalmente dependente do lulismo.
Combater a desigualdade é um projeto político de longo alcance, que já conta inclusive com as simpatias de economistas do Banco Mundial e de outros organismos internacionais. O Fórum Econômico de Davos, considerado a cúpula dos mais ricos do mundo, admitiu em 2019 que já não basta mais reduzir a pobreza para recolocar a desigualdade em limites menos explosivos. Aqui no Brasil, o IBGE revelou este ano que o índice de miseráveis na população brasileira cresceu 50% em relação aos nove milhões registrados em 2015. São indivíduos que, ainda segundo o IBGE sobrevivem com menos de 430 reais por mês.
Davos aconselhou que é preciso também reduzir a fortuna dos mais ricos e é aí que o bicho pega para os seguidores de Bolsonaro. Esta seria uma opção estratégica para qualquer grupo oposicionista que decida ir além da retórica populista e propor medidas sérias de redução da desigualdade, um tema sobre o qual já existe um mínimo consenso em boa parte da opinião pública mundial. Ficar batendo boca por questões político-partidárias do passado é uma perigosa perda de tempo na bomba relógio da desigualdade, coisa que nem o PT e nem Lula parecem ter se dado conta, até agora.
A massa de desiludidos
O desemprego que já afeta quase 12 milhões de brasileiros e o subemprego de outros 14 milhões tem um potencial explosivo que pode pulverizar o cenário politico de forma imprevisível e inexorável. A opinião pública brasileira está anestesiada e não vê a gravidade do problema porque o discurso oficial se refere apenas às filas dos que buscam trabalho e a imprensa não dá um passo adiante para gerar uma consciência da gravidade do que está por acontecer quando os desiludidos cansarem de entrar nas filas dos sem trabalho.
O desemprego entre os jovens brasileiros com 18 a 24 anos chegou a 28,8% do total de indivíduos nesta faixa etária, o mais alto percentual em todas as faixas de idade pesquisadas pelo IBGE, no ano passado. O desemprego entre os jovens, que deveriam estar entrando no mercado de trabalho, inevitavelmente compromete a estrutura futura da sociedade, pois aumenta o contingente dos que não acreditam mais no Estado como uma entidade reguladora nos desequilíbrios sociais e econômicos. Ainda segundo o IBGE, o maior índice de “desalentados” está no nordeste, 60,6% dos indivíduos consultados.
Os números são assustadores, mas a situação ainda não chegou ao ponto crítico porque o aumento vertiginoso do trabalho informal ( bicos e trabalho autônomo) está funcionamento como uma espécie de anestesia financeira. Mas quem decidiu abrir o próprio negócio está trabalhando mais e ganhando menos, o que agrava a desigualdade. A este quadro é preciso agregar o desemprego estrutural causado pela progressiva substituição do trabalho humano pelos robôs e algoritmos eletrônicos, um processo irreversível aqui e no resto do mundo.
O desemprego digital
Uma pesquisa divulgada pela empresa de consultoria econômica McKinsey, revelou que até 2030, aproximadamente 15,7 milhões de brasileiros perderão seus empregos por conta da automação digital. Até o ano que vem, segundo a Federação Internacional de Robótica (ROBORIS), estarão em funcionamento no Brasil quase 12 mil novos robôs industriais. Tudo isto mostra que o contingente de indivíduos desempregados pode atingir limites socialmente incontroláveis nos próximos anos.
O que fazer com tanta gente sem trabalho e consequentemente sem condições de uma vida minimamente digna, sem autoestima e potencialmente recrutável pelo crime organizado? A solução para um desafio gigantesco como este não se limita a propor reformas econômicas pontuais. É toda uma estrutura de produção que está sendo alterada pelo desgaste do capitalismo financeiro e pela digitalização dos processos industriais, agrícolas e de prestação de serviços. Há necessidade de se abrir uma discussão ampla, profunda e, sobretudo, não polarizada. É o que muitos esperam de Lula mas, por enquanto, ainda não se sabe se esta expectativa se concretizará.