As heresias jornalísticas do projeto “Te Liga, Canela!”

Carlos Castilho
4 min readOct 14, 2019

Um jornalismo onde a notícia não é o principal. Onde os jornalistas são minoria. Onde quem decide o que é importante não são os profissionais. Um jornalismo que não é feito em redações, mas nas ruas e bairros. Se você acha isto absurdo ou utópico, veja a seguinte situação: Quando a gente tem uma dor ou febre de origem desconhecida, a primeira coisa que fazemos é procurar um médico para saber o que está acontecendo. Se o médico não consegue dar uma explicação imediata, ele pede exames de laboratório, antes de recomendar remédios. No fundo, quem está com dores vai ao médico buscando informações. O resultado de exames também é informação e é com base nelas que é feita a receita de remédios para eliminar a dor ou febre.

O mesmo acontece numa cidade. Quando, por exemplo, os moradores desconfiam da qualidade da água distribuída à população, a reação lógica é buscar informações para saber se há ou não contaminação por resíduos químicos prejudiciais à saúde humana. Os exames técnicos podem eliminar o medo gerado pela desconfiança. Se a contaminação for comprovada nos testes, a população dispõe de dados concretos para cobrar das autoridades a receita para a solução do problema. O elo comum nas duas situações mencionadas é o papel central ocupado pela informação.

O projeto Te Liga, Canela! partiu desta semelhança de situações para procurar motivar a população da cidade de Canela, na serra gaúcha, a ver a informação como uma ferramenta para resolver problemas das comunidades, em vez de uma mercadoria comercializada por empresas de comunicação. Para atingir este objetivo, o projeto comete algumas heresias jornalísticas surgidas a partir da observação prática de alguns problemas da cidade. Tudo começou com a polêmica em torno da possível contaminação, por resíduos de agrotóxicos usados em lavouras de batata, da água distribuída pela concessionária CORSAN.

Falta de informação gera medo e boataria

As suspeitas surgiram a partir da contaminação de riachos e rios que recebem a água da chuva que escorre de plantações situadas em municípios próximos a Canela. É de um desses rios, o Santa Cruz, que é captado o líquido distribuído à população. As incertezas geram medo, boataria e insegurança porque as pessoas não dispõem de dados e fatos concretos capazes de tranquilizá-las. Caso tivessem estas informações, as dúvidas desapareceriam e a comunidade teria como pressionar a prefeitura e a CORSAN.

Esta situação, que se repete em vários outros problemas da cidade, mostrou uma nova alternativa para o uso do jornalismo como instrumento para integrar o processamento de informações dentro da dinâmica da sociedade. Nesta conjuntura, o jornalismo ganha uma relevância inédita, não como provedor de um produto comercial, mas como parceiro na busca de soluções para problemas comunitários. A tradicional preocupação dos jornalistas com a notícia inédita, recente, impactante, objetiva e imparcial, cede lugar à necessidade da pertinência, relevância e confiabilidade de dados, fatos ou eventos vinculados diretamente às necessidades ou desejos relacionados à solução de problemas da comunidade.

O Te Liga, Canela! só tem um membro com experiência jornalística. Todos os demais têm outras profissões e experiências. O que os une é a consciência de que o fluxo de informações geradas pela imprensa convencional está em total desacordo com as necessidades da população. Os canelenses sabem melhor do que ninguém onde estão os problemas da cidade porque os vivenciam diariamente. Por este mesmo motivo, eles são também a melhor fonte de informação sobre como resolvê-los. Só que para que exista a simbiose entre jornalismo e comunidade, é preciso que os jornalistas deixem de priorizar as redações para envolver-se com as comunidades.

Os dilemas do engajamento

Aqui está um dos dois grandes dilemas identificados pela equipe do Te Liga. O engajamento com a população implica mudanças consideráveis tanto na prática do jornalismo como no comportamento das pessoas. O outro grande dilema é a sustentabilidade financeira de projetos como o Te Liga, Canela! Estes dois dilemas embutem mais duas grandes heresias assumidas pela equipe do projeto. Engajar-se com a população implica relativizar toda a preocupação com isenção e imparcialidade. Quando o jornalismo se coloca ao lado das pessoas para buscar dados sobre contaminação da água, ele deixa de ser um observador imparcial para ser parte interessada na solução do problema. Quando a sobrevivência de projetos informativos não comerciais depende da captação de recursos, a tradicional separação rígida entre jornalismo e finanças deixa de existir.

O projeto Te Liga, Canela! ainda é uma experiência muito nova na era digital. A equipe já sabe como buscar, produzir e veicular informações, mas ainda lhe falta muita experiência na busca de uma parceria interativa com as comunidades. As incertezas no relacionamento com os moradores e a busca da auto sustentação financeira são inerentes à transição de modelos no exercício do jornalismo. A desilusão com a imprensa tradicional está gerando uma migração de jovens jornalistas locais rumo a outras atividades informativas. São estes profissionais que o Te Liga pretende atrair para reforçar este jornalismo “herético”.

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Carlos Castilho
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Written by Carlos Castilho

Jornalista, pesquisador em jornalismo comunitário e professor. Brazilian journalist, post doctoral researcher, teacher and media critic

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