As falácias da quebra de braço entre imprensa e plataformas digitais
A batalha política e comercial entre os conglomerados jornalísticos tradicionais e as plataformas digitais na internet está confundindo a opinião pública porque os dois lados usam argumentos errados para esconder o que realmente importa. Mas antes de tudo precisamos deixar claro que jornalismo e imprensa não são sinônimos da mesma forma que plataformas digitais e redes sociais não são a mesma coisa.
Jornalismo é a função de investigar, editar e publicar dados, fatos e eventos considerados relevantes para a sociedade. Imprensa é o nome genérico para as empresas que comercializam a notícia produzida por jornalistas. Plataformas digitais são empresas como Facebook, Google e Twitter que oferecem a infraestrutura tecnológica para que usuários da internet possam criar redes de comunicação interpessoal.
Assim, o que assistimos hoje é uma disputa entre órgãos da imprensa e as plataformas. Não é um confronto entre jornalistas e usuários de redes sociais virtuais, já que ambos fornecem os conteúdos que tornam viáveis social e financeiramente tanto a imprensa como as plataformas. Neste confronto, o que está em jogo são negócios e interesses financeiros aos quais tanto os profissionais do jornalismo como nós usuários das redes não tem acesso.
A imprensa tradicional está em declínio financeiro e cobra uma regulamentação das redes sociais para prolongar a sobrevida de jornais, revistas e emissoras de radio e TV, usando como argumento o fato de que as plataformas digitais se negam a aceitar as regras legais criadas pelos grandes conglomerados midiáticos. A imprensa alega que as plataformas lucram com as notícias falsas e com o discurso do ódio apesar dela ter sido beneficiada por estes mesmos delitos ao longo de sua história.
Já as plataformas, partindo da privilegiada situação criada pelas fortunas bilionárias acumuladas com a migração da publicidade para a internet, afirmam que não se submeterão às regras vigentes porque não são órgãos de imprensa, ignorando o fato de que elas dependem do fluxo de conversas entre seus usuários. Afirmam que não produzem conteúdos, mas não mencionam o fato de que o fluxo de mensagens é administrado por algoritmos programados para dar mais visibilidade a conteúdos com maior capacidade de atrair publicidade paga.
No fundo, tanto a imprensa como as plataformas usam conteúdos (notícias e conversas) para atrair a atenção de pessoas como forma de dar visibilidade à propaganda paga. Nisto usam o mesmo recurso, só que a fórmula empregada pela imprensa já não rende mais os lucros de antes, enquanto as plataformas nadam em dinheiro oriundo de anunciantes. Aí temos um problema de um segmento que não quer continuar perdendo dinheiro enquanto outro só pensa em seguir faturando alto.
Plataformas sob forte pressão
No meio de tudo isto estão os jornalistas e as pessoas que aderiram ao hábito de se comunicar pela internet. Como tanto a imprensa como as plataformas faturam em cima dos conteúdos publicados, a lógica capitalista indica que tanto os jornalistas como os internautas deveriam ser remunerados por terem fornecido o material informativo que atraiu anúncios pagos. A polêmica se complica quando se discute como seria uma nova repartição financeira do bolo publicitário. Os veículos impressos alegam que já pagam os salários de seus repórteres, fotógrafos, editores e pessoal técnico, enquanto as plataformas dizem que só encaminham os internautas aos sites de órgãos da imprensa.
Canadá e Australia criaram leis obrigando as plataformas a pagar pelo uso de notícias, reportagens, entrevistas e vídeos produzidos por empresas jornalísticas tradicionais. A experiência ainda é demasiado recente para que os resultados sejam imitados. Mas pelo que já se sabe, os produtores de conteúdos publicados na internet, sejam eles profissionais ou amadores, tem uma participação mínima na repartição de receitas.
A imprensa tradicional pretende enquadrar as plataformas numa regulamentação com força de lei para obrigá-las a desacelerar o seu crescimento econômico e político. É uma quebra de braço espinhosa para ambas as partes. As plataformas se recusam a serem regulamentadas por uma questão de arrogância e prepotência. Elas não perdem dinheiro se forem submetidas a regras sobre fake news e discurso do ódio. No máximo deixam de faturar alguns milhares de dólares, mas o grosso da receita publicitaria vai permanecer e pode até aumentar.
O problema é que a imprensa quer regulamentar as plataformas, mas não admite que o mesmo principio seja aplicado a ela, conforme mostram as históricas diatribes contra qualquer intento, mesmo suave, de ampliar o conjunto de leis que disciplinam o funcionamento de jornais, revistas e telejornais. Não é de hoje que os adversários do presidente Lula, volta e meia, fazem muito barulho em torno de supostas articulações do petismo sobre regulamentação da imprensa.
O que tanto a imprensa tradicional como as plataformas ignoram, ou fingem ignorar, é o fato de a questão central na quebra de braço é mais profunda do que o bate-boca em torno de dinheiro ou de preocupações com notícias falsas e discurso do ódio. Estamos diante de uma mudança radical no âmbito da comunicação social. A notícia deixou de ser algo escasso e caro. Milhões de pessoas no mundo inteiro passaram a poder expressar suas opiniões para outros milhões de indivíduos. O fluxo de informações tornou-se quase instantâneo. A digitalização viabilizou a datificação, transformação em números digitais, de tudo o que nos cerca. A propriedade intelectual está sendo substituída pela inovação permanente. Passamos a viver imersos na informação.
São processos e fenômenos que estão mudando a nossa forma de existir e, portanto, precisam ser levados em conta na hora de resolver as pendências entre imprensa e plataformas. É irracional querer submeter as redes sociais, que dão vida às plataformas, ao mesmo regime editorial, financeiro e gerencial, adotado pela imprensa convencional. Mas também é inegável que não se pode simplesmente apagar toda a cultura informativa desenvolvida ao longo dos pouco mais de 200 anos de jornalismo profissional.