A tríade do jornalismo digital

Carlos Castilho
5 min readJul 9, 2023

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A evolução do exercício do jornalismo na era digital aponta na direção de uma tríade formada por engajamento com o público, curadoria de notícias e sustentabilidade econômica. São três fatores independentes, mas que estão ligados entre si por um alto grau de integração e interação vinculadas às mudanças provocadas pela internet e pela digitalização na prática do jornalismo.

Antes de tratar em detalhe cada um dos componentes da tríade é necessário mostrar, mesmo que brevemente, como ela surgiu e porque a integração e interação dos três elementos é o grande desafio colocado para as novas gerações de jornalistas.

Até a chegada da internet, o engajamento com o público era considerado uma operação de marketing visando criar uma imagem simpática da imprensa junto aos compradores de jornais e revistas ou às audiências de programas noticioso na rádio ou TV. Repórteres, editores e comentaristas assumiam a postura de quem sabe de coisas que só eles conhecem. Era uma relação vertical e unidirecional no fluxo de notícias.

Por seu lado, a curadoria era vista como uma espécie de luxo intelectual de acadêmicos universitários porque a cultura hegemônica nas redações, e na maioria dos profissionais autônomos, se apoiava na ideia de que os jornalistas sabem o que é bom para as pessoas e no que elas estão interessadas. Como os fluxos informativos estavam concentrados em poucos veículos por causa de limitações tecnológicas, a função de orientar o público ficava nas mãos dos chamados “porteiros da notícia”, os chefes de reportagem e chefes de redações que escolhiam o que merecia ou não ser investigado e publicado.

Já a sustentabilidade econômica de um jornal, revista, emissora de rádio ou TV era função exclusiva da parte administrativa e gerencial da respectiva empresa. Há quase dois séculos, a imprensa da época passou a associar a notícia à publicidade criando um modelo de negócios que proporcionou alta lucratividade para a comercialização de informações impressas e audiovisuais. Esta estratégia empresarial levou as corporações a apropriar-se do discurso jornalístico sobre temas como liberdade de expressão, credibilidade, imparcialidade e objetividade com o objetivo de captar a confiança do público para uma atividade que fundamentalmente buscava lucros financeiros.

As empresas jornalísticas no mundo inteiro, especialmente nos Estados Unidos alcançaram taxas de lucratividade liquida muito acima de outros remos de negócios. Nos EUA alguns conglomerados jornalísticos registraram taxa de lucro acima dos 20% anuais, fato que acabou levando as empresas nos anos 90 do século XX, a não darem a devida atenção ao crescimento da digitalização e a internet. Isto acabou forçando o jornalismo a mergulhar numa nova realidade, com as rotinas, regras e valores muito diferentes das vigentes na era analógica.

As pontas da tríade

Uma das novas constatações da era digital é a de que o engajamento, seleção de notícias ou curadoria e a sustentabilidade financeira precisam ser encaradas como um todo, onde as partes dependem umas das outras. Isto porque, avalancha informativa na internet nos permitiu ver detalhes, coincidências e relações que antes não conseguíamos perceber por falta de mais dados e fatos. Houve uma evolução quantitativa que gerou um pulo qualitativo, ou seja, com mais dados, pudemos ver mais longe e com isto perceber novas realidades e suas respectivas práticas, normas e princípios.

É a tal de visão holística da transição do jornalismo da era analógica para a digital. Ver a questão como um todo nos obriga a ser muito mais abertos e menos ortodoxos na análise dos dados numéricos, fatos, eventos e opiniões, porque precisamos analisá-los no conjunto, ou seja, encarar a complexidade da área de comunicação e informação. Isto mostrou que o jornalista não tem o poder de conhecer toda a realidade, logo ele precisará de colaboração na preparação de notícias e reportagens.

A observação da prática permite estabelecer claramente como as três pontas do tríade estão entrelaçadas e integradas estreitamente. Tomando como ponto de partida a necessidade de sustentabilidade financeira, a prática mostra que para as pessoas paguem por notícias elas precisam receber algo em troca que seja efetivamente uma necessidade individual ou coletiva. O dinheiro não está sobrando para a maioria esmagadora das pessoas, logo elas só farão uma assinatura, pagarão por acesso à notícias ou doarão tempo e energias se tiverem algum benefício.

Este benefício é a notícia, só que esta notícia ou informação precisa ser sobre algo que as pessoas realmente necessitem, como por exemplo onde a gasolina está mais barata ou como evitar multas no pagamento de impostos. Falar sobre a crise no Partido Liberal pode ser importante para o establishment em Brasília, mas não é para os moradores do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro. O fato de insistir numa agenda noticiosa distante das realidades vividas pelas pessoas comuns acabou gerando o fenômeno do negacionismo informativo.

A notícia é o grande e insubstituível instrumento que os jornalistas têm para lograr o apoio financeiro do público, já que o modelo tradicional de financiar um jornal com publicidade paga não funciona mais. Além de produzir notícias atendendo às necessidades diretas da comunidade, o jornalista precisa ser também um curador de informações, porque as pessoas não têm tempo e nem conhecimentos para avaliar quando um dado, fato ou opinião merece ou não crédito. A desinformação é um processo que contamina cada vez mais a circulação de notícias na mídia.

Aquilo que muitos chamam inapropriadamente de “venda” de uma notícia, que antes era voltado principalmente para o mercado de anunciantes, agora precisa atingir a dona de casa, o empregado/a do supermercado ou o funcionário/a público/a municipal. Para que estes “comprem” uma notícia ela precisa ter real valor para ele ou ela, e para que este valor seja identificado pelo jornalista, ele precisa ter um contato estreito e permanente com seu público-alvo.

É aí que entra a terceira ponta, o engajamento com a comunidade. Sem um contato direto e permanente com a comunidade na qual está inserido, o jornalista não consegue identificar as preocupações reais das pessoas. Isto é fundamental para que se estabeleça um vínculo de confiança capaz de levar a uma contribuição financeira ou a uma parceria em bases mais solidas e permanente.

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Carlos Castilho
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Written by Carlos Castilho

Jornalista, pesquisador em jornalismo comunitário e professor. Brazilian journalist, post doctoral researcher, teacher and media critic

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