A imprensa caiu na armadilha da transparência informativa

Carlos Castilho
4 min readNov 16, 2017

Depois de cobrar durante décadas a fio a transparência de governos, instituições não governamentais e organismo internacionais, as empresas jornalísticas acabaram agora provando do mesmo remédio que tanto receitaram a seus desafetos. Elas sempre procuraram manter ocultas suas estratégias financeiras e políticas, mas estão sendo obrigadas a revelar, a contra gosto, os seus segredos diante da pressão cada vez maior dos usuários de redes sociais, blogs e páginas na Web.

Ilustração: CC BY-SA HonestReporting.com, flickr/freepress — CC

Trata-se de uma mudança de consequências ainda pouco claras, mas consideradas importantíssimas por um número crescente de pesquisadores acadêmicos. A defesa da transparência informativa deu à imprensa o grande instrumento para poder inserir-se no jogo de poder protagonizado pelas elites políticas e econômicas. A cobrança de transparência serviu para que jornais, revistas, rádios e emissoras de TV se auto definissem como instituições sociais encarregadas de patrulhar os poderosos para zelar pelos interesses da sociedade e portanto moralmente autorizadas a vasculhar as “caixas pretas” de governos e empresas privadas.

Além disso, as empresas jornalísticas sempre consideraram a cobrança de transparência nas ações de órgãos públicos e privados como um item chave para a captura de dados e fatos capazes de atrair a atenção do público, e consequentemente alavancar receitas oriundas do varejo noticioso e da publicidade. Houve um casamento perfeito entre motivações políticas e financeiras que durou cerca de 200 anos.

O acesso os segredos alheios preenchia a necessidade operacional, ter fatos e dados para administrar a atenção de leitores, ouvintes, telespectadores e internautas ao organizar a agenda noticiosa transmitida ao público. Este papel na gestão dos focos de interesse das pessoas era, e ainda é, o capital político usado pela grande imprensa no mundo inteiro para buscar um lugar privilegiado no jogo de poder entre as instituições sociais tomadoras de decisões.

Apesar desta dependência estrutural em relação à exigência de transparência governamental, o público sempre cobrou da imprensa apenas o cumprimento das normas que ela própria adotou como padrão de comportamento profissional. A instituição que se autoproclamou “cão de guarda dos poderosos” só era cobrada quando publicava dados falsos ou inexatos, quando se omitia em questões relevantes ou quando pecava por falta de isenção.

Mas tudo isto começou a mudar com a chegada da internet, quando o público passou a cobrar a transparência dos negócios, decisões administrativas e opções politicas da imprensa, num comportamento alimentado pela multiplicação e diversificação de dados, fatos e eventos relacionados ao quotidiano dos meios de comunicação.

A patrulha dos patrulheiros

Quando as pessoas começam a se preocupar com o que não sabem sobre a imprensa, esta fica vulnerável a um tipo de pressão que só tinha enfrentado em raríssimas ocasiões, até a chegada da internet. Ela podia ignorar olimpicamente as críticas ao sigilo que sempre cercou seus negócios e alianças políticas. Esta preocupação com o sigilo empresarial ainda é norma na quase totalidade de empresas jornalísticas no Brasil e no mundo. Este tipo de conduta é, talvez, a grande responsável pela migração do público para as redes sociais, blogs noticiosos e paginas alternativas na Web.

O “cão de guarda “ passou a ser vigiado por outro “cão de guarda” e aí a imprensa começou a ter que disputar a credibilidade pública, interrompendo um longo período de domínio absoluto na formação da agenda pública de debates. Esta mudança tende a alterar também a forma como a imprensa se insere no jogo de poder e mina as bases de sustentação financeira de jornais, revistas e telejornais.

O caso da corrupção em eventos esportivos internacionais, atualmente em julgamento na justiça norte-americana envolve várias empresas jornalísticas entre as quais a TV Globo, a Televisa mexicana e a Rede Fox, dos Estados Unidos. Estres três poderosíssimos conglomerados midiáticos estão tendo que se submeter ao escrutínio público e passaram a adotar uma atitude politica defensiva. O caso do âncora do Jornal da Globo, William Waack, é mais uma evidência de como um incidente, que no passado seria ignorado, obriga emissoras poderosas a tomarem medidas radicais para que não sejam acusadas de acobertar situações que elas tanto investigaram quando se tratara de outras pessoas ou instituições.

A armadilha da transparência atingiu os grandes conglomerados midiáticos, a maioria dos quais está preferindo abandonar o jornalismo a abrir a “caixa preta” de suas finanças e parcerias políticas. Os donos e controladores de empresas jornalísticas acabaram ficando na mesma posição dos políticos que até bem pouco tempo eram seus alvos preferidos na cobrança de transparência. Talvez a imprensa esteja em situação mais vulnerável, porque os políticos ainda controlam, não se sabe por quanto tempo, os poderes executivo, legislativo e judiciário, bem como as Forças Armadas e a polícia.

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Carlos Castilho

Jornalista, pesquisador em jornalismo comunitário e professor. Brazilian journalist, post doctoral researcher, teacher and media critic