A ameaçadora “terceirização” dos exércitos
A rebelião protagonizada pelos mercenários do Grupo Wagner, no último fim de semana (24 e 25/6) na Rússia, revelou como a terceirização militar se tornou um fenômeno globalizado e supra ideológico, capaz de transformar ações bélicas em negócios altamente lucrativos, sem qualquer tipo de controle por parte da sociedade civil.
O Grupo Wagner, assim como a empresa Blackwater, dos Estados Unidos, é uma milicia armada, cujos membros atuam numa zona cinzenta da ação militar e usam métodos formalmente considerados “não convencionais” e não contemplados na maioria dos manuais de forças regulares em terra, mar e ar.
O histórico do Wagner e da Blackwater mostra que a contratação de forças paramilitares está associada a massacres que na maioria dos casos passaram impunes pelos tribunais militares convencionais. Vários de seus chefes ou integrantes acabaram perdoados, como ocorreu com os responsáveis pela chacina da praça Nisour, em Bagdad, em 2007, quando mercenários norte-americanos executaram 17 civis iraquianos desarmados e feriram gravemente outros 20.
A contratação de soldados de aluguel introduziu a informalidade nos conflitos bélicos e se tornou uma ameaça tanto à população civil como até mesmo às forças oficiais de segurança, porque os milicianos não estão sujeitos a qualquer tipo de controle institucional. Eles recebem uma licença para matar em nome de um salário ou da captura de despojos de guerra.
Trata-se de um refúgio seguro para uma escória de delinquentes, ex-policiais e ex-militares interessados em usar suas habilidades criminosas e a proteção das autoridades para tentar enriquecer à margem da lei e de valores sociais. No caso do grupo Wagner, criminosos condenados na Rússia ganharam a liberdade para combater na Ucrânia, enquanto a Blackwater contou com farto suprimento de imigrantes ilegais centro-americanos que aceitaram ir para o Iraque em troca de um visto de residência nos Estados Unidos.
Um negócio em expansão
A globalização do fenômeno das milicias atinge hoje além da Ucrânia, onde atua o Wagner pelo lado russo e o Esquadrão Azov pelo lado anticomunista, vários outros países onde ocorrem conflitos sangrentos como as repúblicas do Mali, Mauritânia e República Centro Africana. Uma rápida consulta à Wikipedia mostra que nove países em quatro continentes abrigam empresas que contratam mercenários. O site lista 32 organizações paramilitares em operação em todo o mundo. Quinze delas sediadas nos Estados Unidos, seis no Reino Unido e cinco na Rússia. A empresa peruana Defion International, é a única latino-americana nesta lista. Ela contratou mercenários para lutar no Iraque para a empresa norte-americana Triple Canopy.
Mas o fenômeno tem ainda uma faceta política e outra corporativa. Política, na medida em que os governos recorrem a mercenários para executar ações fora dos limites legais e das normas internacionais, como por exemplo, a Convenção de Genebra sobre respeito a prisioneiros políticos. Corporativa, porque os mercenários livram as forças armadas regulares de envolvimento em guerras impopulares e de prestar contas à sociedade sobre mortes e mutilados de guerra.
A expansão do negócio da locação de milicianos permite também aos comandos militares regulares manter sua próspera participação na indústria armamentista, que passou a ser uma atividade complementar às funções estabelecidas constitucionalmente.
As milicias e exércitos privados se alimentam do caixa 2 dos governos aos quais estão ligados, o que fornece indícios de como a contabilidade oficial contém mais furos do que um queijo suíço. Operações do Wagner ou da Blackwater não passam pelo crivo legislativo e nem sempre contam com as simpatias dos comandos militares regulares. O motim do grupo Wagner visava derrubar o comandante do exército russo, general Valery Gerasimov, tachado de incompetente pelo ex-cozinheiro Yevgeny Prigozhin, chefe dos mercenários. Foi a criatura se rebelando contra o criador.
Para os civis, a proliferação dos exércitos de aluguel cria um dilema crucial porque as sociedades estão sendo marginalizadas no processo de tomada de decisão sobre conflitos militares. A contratação de mercenários em lugar da mobilização de forças regulares cria um submundo bélico imune ao controle dos poderes legislativo e judiciário, criando uma ameaça potencialmente letal à democracia.